quinta-feira, 4 de abril de 2013

Administração Pública e Constituição


            A primeira coisa que é preciso dizer, e que o Prof Vasco da Silva Pereira dá bastante importância, é a ligação entre a Constituição e a Administração Pública (AP). E que tem a ver com a função limitadora que as constituições vieram trazer para, designadamente, a actuação do Estado e, portanto, a consagração dos princípios do Estado de Direito não é alheia ao movimento do constitucionalismo e como tal a ligação entre Constituição e Administração Pública é sublinhada pela doutrina.
            O Prof Vasco Pereira da Silva salienta uma expressão típica da doutrina alemã que diz que o Direito Administrativo (DA) é Direito Constitucional (DC) concretizado, ou seja, o Direito Administrativo é efectivamente a concretização prática de muitas opções que já estão tomadas na Constituição e que são indisponíveis para o legislador ordinário.
            No entanto, lá por esta ideia ser muito referida, não quer dizer que seja inequívoca, há quem ponha em causa a ideia de que o Direito Administrativo tem essa ligação radical, há que diga que isso é mais um discurso legitimador. Otto Mayer que disse que a certa altura o Direito Constitucional passa e o Direito Administrativo fica, ou seja que quando o chefe é um o Direito Administrativo funciona, mas quando o chefe é outro, este também funciona.
            A ideia de que o Direito Constitucional passa e o Direito Administrativo fica, é uma ideia que procura denunciar um ficção da ligação dentre o DA e o DC. Temos que dizer, obviamente, que é verdade que pode acontecer, e esse fenómeno está relativamente bem documentado na nossa doutrina administrativa, designadamente no Prof Rogério Soares, que haja passagem e que haja permanência dos institutos do DA entre sistemas constitucionais completamente diferentes, aliás, foi exactamente isso que aconteceu na passagem do chamado Antigo Regime, para o regime liberal. Hoje em dia a doutrina chama de facto à atenção para que muitos dos mecanismos de DA, prévios à Revolução Francesa permaneceram no âmbito do novo sistema constitucional e serviram, precisamente, para fortalecer as conquistas revolucionárias.
O DA, desse ponto de vista, é um direito de legitimação também muitas vezes de sistemas políticos diferentes e é por isso que se pôde dizer, a certa altura, que o DC passa, as revoluções passam, no fundo o chefe muda, mudam as concepções essenciais sobre o ordenamento jurídico, mas o DA, aquele que é o seu aspecto mais técnico, os seus institutos vão permanecendo.
Não que dizer contudo, que isto seja um fenómeno isento de crítica e alguns casos não é um fenómeno aceitável. Em muitos casos a manutenção dos institutos que nasceram ao abrigo de uma determinada constituição política, manifestamente não podem subsistir no âmbito de outra. Um exemplo muito claro disso em Portugal foi no âmbito da passagem para a constituição política de 1976, que teve implicações imediatas e claríssimas do ponto de vista do DA, essencialmente do ponto de vista do DA do contencioso, porque no âmbito do DA do Estado Novo, que era um DA, sobretudo de matriz francesa e que se aplicava aquela ideia de que, por exemplo os particulares só podiam ter acesso aos tribunais administrativos, ou seja só podiam impugnar uma acto administrativo, depois de terem esgotado toda a cadeia de recursos hierárquicos, isto é, existia uma ideia clara de limitação à justiça administrativa que tinha a ver com aquelas concepções político constitucionais que estavam subjacentes ao regime político da altura. E também, não era possível, à luz do sistema contencioso administrativo da altura, o particular valer-se de meios de plena jurisdição, ou seja, estava limitado, em regra, ao contencioso meramente anulatório.
Portanto, é verdade que o DA como direito, por vezes, mais técnico, mais concreto, faz com que os seus institutos, por vezes convivam bem com sistemas constitucionais diferentes, mas a verdade é que não é necessário assim o ser, como visto no exemplo da passagem do sistema constitucional do Estado Novo, para o consagrado na Constituição de 76.
Isto tudo, de alguma maneira tem um a tradução na Constituição de 76, que é fortemente interventiva na AP, portanto, a CRP, claramente quis submeter a AP, porventura por um fenómeno de reacção às práticas administrativas da Constituição de 33, de uma forma muito clara e vinculativa a determinados princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático.
Isto traduz-se na existência de um leque de normas sobre a AP e sobre a actividade administrativa mais geral e sobre o controlo da actividade administrativa, que estão, essencialmente, mas não apenas, contidos nos artigos 276º e ss da CRP. É a chamada Constituição da Administração, ou Constituição Administrativa. Estes artigos contêm um elenco muito significativo de normas relativas à actividade administrativa e à própria organização e controlo da actividade administrativa, e das quais vamos ter uma breve ideia antes de estudarmos os princípios concretos que regulam a actividade administrativa.
Por outro lado, antes de analisarmos a Constituição administrativa, no pensamento do Prof Vasco Pereira da Silva, não pode ainda esquecer-se o particular relevo que tem a afirmação constitucional dos direitos fundamentais para a actividade da Administração, isto é, se se olhar para a nossa Constituição, esta não regula a AP só quando está a regular a AP, ou seja, não regula a AP só quando está a dizer no 266º e ss quais são os princípios e regras que são aplicáveis à AP. A nossa Constituição, em regra, por exemplo, quando afirma um determinado conjunto de direitos fundamentais, acompanha essa afirmação na criação de serviços públicos que são instrumentais para a satisfação desses direitos fundamentais, ou então acompanham o enunciado direito fundamental da afirmação de uma estrutura de normas, de uma regulação administrativa em sentido lato, que vai permitir concretizar esses direitos fundamentais.
Portanto, quando a CRP afirma, por exemplo, o direito à habitação no 65º/1, faz acompanhar esse enunciado de um direito fundamental no 2 desse artigo de um conjunto de políticas públicas, muitas delas prosseguidas e levadas a cabo por entidades administrativas, ou pelo Estado. Logo a CRP faz acompanhar a afirmação de direitos fundamentais da obrigação expressa desses direitos fundamentais e da acção do Estado, ou seja, coloca o Estado ao serviço dos direitos fundamentais. O que significa que quando a CRP diz esta e outras coisas está a afirmar que o Estado tem um dever de levar a cabo a satisfação desses direitos, e as estruturas que levam a cabo essa satisfação são as estruturas administrativas. Portanto, a CRP também fala sobre a AP quando comete tarefas ao Estado, sendo estas tarefas instrumentais de direitos fundamentais. E para o Prof Vasco Pereira da Silva este ponto é essencial.
Uma Constituição de Estado de direitos fundamentais é, à partida, uma coisa que traz consigo consequências do ponto de vista da actuação administrativa e a CRP faz isso claramente, quer do ponto de vista organizacional, que do ponto de vista substantivo, quer do ponto de vista da garantia dos direitos dos particulares, a nossa constituição é muito eloquente, muito expressiva a fazer essa ligação entre o DA e o DC.
            Exemplo de uma manifestação prática: a relevância que a CRP dá ao modelo de contencioso administrativo no 268º/4 e 5, onde diz expressamente e até se refere a meios processuais em concreto que os particulares podem fazer valer no âmbito da sua relação com a AP. Diz coisas como por exemplo, que os particulares têm direito à tutela jurisdicional efectiva face à AP. Mas porque é que a CRP o diz aqui a propósito do 268º se esta já consta do 20º? Exactamente pela circunstância de antes de 1974 os tribunais administrativos serem de facto meras extensões da AP. E o que a CRP de 76 veio dizer foi que estes tribunais eram verdadeiros tribunais, veio consagrar mecanismos de defesa dos particulares face à AP, porque, como diz o Prof Vaco Pereira da Silva, os direitos fundamentais concretizam-se através da justiça administrativa, isto é, o contencioso administrativo, os meios processuais de controlo da actividade administrativa são particularmente relevantes do ponto de vista de uma concretização prática dos direitos fundamentais dos particulares face à AP.
            Se se afirmarem os direitos fundamentais, mas se estes não vierem acompanhados de um sistema de contencioso administrativo que seja efectivo, que seja suficiente, que seja verdadeiramente jurisdicional porque independente da AP, não serve de nada essa afirmação.
A faceta da garantia dos direitos fundamentais dos particulares face à AP é largamente tutelada pela CRP, como explica o Prof Vasco Pereira da Silva, o Direito do contencioso administrativo português tem como seu parâmetro de validade o DC. Para cada norma do código do processo dos tribunais administrativos, tem-se que confrontar essa norma com o padrão constitucional da relação do contencioso administrativo e ver se essa norma do código do processo dos tribunais administrativos está à altura da exigência que a CRP lhe formula.
Quais são as opções constitucionais relevantes para a compreensão da AP e para a compreensão do estatuto jurídico da AP?
Desde logo, a garantia da coexistência dos três sectores de propriedade dos meios de produção: a CRP garante, expressamente, que há um sector público, privado e um sector cooperativo dos meios de produção. Esta garantia tem sido considerada pela doutrina, como uma garantia forte em sentido próprio, ou seja, não há, de acordo com a CRP uma ideologia do Estado mínimo. O Estado, de acordo com a CRP, não é mínimo. A garantia do sector público tem precisamente o sentido de estabelecer que o sector público tem que ser relevante e tem que ser suficiente para satisfazer que a constituição atribui ao Estado, missões essas que não se limitam apenas à satisfação dos chamados direitos sociais.
A CRP prevê uma divisão entre direitos, liberdade e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, e nós podíamos ser tentados a dizer que o DA, que o Estado é chamado a desempenhar tarefas, sobretudo no âmbito dos direitos sociais, o que é verdade, mas não podemos esquecer          que no âmbito dos direitos, liberdade e garantias, o Estado também é chamado a desempenhar funções relevantes. Basta pensar, por exemplo, que o direito à vida e o direito à integridade física, são direitos claramente, direitos liberdade e garantias, mas que não podem subsistir se não existir uma estrutura de segurança pública, ou seja, órgãos de polícia, quer de investigação, quer de segurança, que sejam suficientes para suportar essa garantia que é a segurança privada, pessoal, a integridade física, a vida, etc.
Portanto se não existirem corpos policiais, que são entidades administrativas, são órgãos da administração, verdadeiramente não é satisfeita a tarefa do Estado de contribuir para a protecção dos direitos liberdades e garantias. Por isso não se deve ficar com a ideia de que só relativamente aos direitos sociais é que o Estado é chamado a intervir, esta ideia é afastada pela doutrina com a afirmação do carácter unitário dos direitos fundamentais. Ainda que a CRP faça a distinção entre direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais, a verdade é que as garantias não têm só uma dimensão negativa, de abstenção do Estado, também têm uma dimensão positiva, obrigam o Estado a fazer coisas, como também os direitos sociais têm dimensões negativas e positivas, ou seja, os direitos sociais também pedem ao Estado, em algumas circunstâncias, abstenção, e não apenas direitos a prestações.
A afirmação dos direitos fundamentais na constituição e a sua compreensão enquanto direitos fundamentais unitários, exige do Estado uma estrutura de protecção, de salvaguarda e de promoção dos direitos fundamentais que é transversal, que é comum a todas as formas de direitos fundamentais e a todos os direitos fundamentais previstos na CRP.
Quando a CRP prevê a existência de direitos fundamentais isso implica para o Estado tarefas que são levadas a cabo através da AP.
Garantias concretas: existência de serviços públicos ex: serviço público da rádio e televisão (38º/5), existência da Segurança Social (73º), Serviço Nacional de Saúde (74º). Até que se mude a CRP, o governo tem de dotas essas estruturas de instrumentos para elas conseguirem levar a cabo a sua função. É esta a forma de pensar, quando falamos da relação do DA com a Constituição.
É à constituição que compete as opções fundamentais em matéria de tarefas do Estado. Enquanto nós, como comunidade política, assumirmos aquelas normas como padrões que rege a nossa vida comum, é àquilo que estamos vinculados.
Enfim, primeiro ponto: a regulação concreta da existência de serviços públicos, estruturas administrativas de prestação que levam a cabo a satisfação de necessidades colectivas.
Segundo ponto: garantia concreta da existência de áreas da via social que são reguladas pelo DA e ou por entidades administrativas (ex: o 39º impõe a existência de uma entidade reguladora da comunicação social, esta não é uma criação do legislador, mas sim uma imposição constitucional, e o legislador constituinte fez essa imposição dizendo que a comunicação social é objecto de regulação por uma entidade administrativa independente. Ou seja, a cobertura de uma determinada área da vida social por regras do DA, em concreto pela acção de um regulador. Outro exemplo comissão nacional de protecção de dados, é de acordo com o 35º, uma entidade administrativa independente, mais um campo da vida social em que o legislador coloca sob a alçada de uma entidade administrativa independente. Outro exemplo é a imposição constitucional da existência de planeamento urbanístico 65º/4).
A CRP regula ainda a AP na medida em que lhe prescreve a existências de princípios gerais ada actividade administrativa (266º e ss).
De acordo com o 266º/1 fica claro que o que verdadeira mente define a actividade da AP é a tarefa de conciliar o interesse público com os direitos dos particulares. Aliás, há quem diga que a definição do DA é que aquele ramo do Direito que procura de uma forma directa e assumida a conciliação do interesse público com os direitos dos particulares, e é o que diz no 266º/1. Não é por acaso que quando a CRP vai começar a falar sobre a AP, a norma pórtico é uma norma que começa por dizer que a AP comporta-se, no âmbito da sua actividade, conciliando interesse público com os direitos dos particulares, e tudo o resto é uma concretização disto.
A primeira ideia chave é que a CRP quer que a AP actue conciliando o interesse público com os direitos dos particulares, o que nos diz que, se o interesse público não é necessariamente coincidente e não se conforma com os direitos dos particulares, a AP quando está no âmbito da relação com o particular não pode esquecer que ali está outra pessoa que não é um mero administrado.
No 266º/2 são enunciados os vários princípios pelos quais se rege a AP.
Normas acerca da própria organização da AP. São normas em que a CRP tomo posição sobre como é que a AP deve ser organizada, sobre como é que ela deve ser constituída, como é que os seus serviços e entidades integrantes devem ser organizados. E a CRP diz-nos que deve ser descentralizada, desconcentrada, e, à partida de acordo com o princípio da subsidiariedade (6º da CRP), mas também nos diz que a AP deve ser estruturada de forma a estar próxima dos administrados (267º).
A CRP fala-nos de uma AP aberta, os particulares têm acesso à informação administrativa, os particulares podem olhar para dentro da AP, ou seja, o princípio chamado do arquivo aberto está consagrado no 267º/1 e juntamente com o direito do acesso à informação procedimental, também neste artigo, dá-nos a nota que a AP não é opaca, que é, pelo contrário transparente, podendo um particular qualquer, ir pedir à AP que lhe dê informação acerca de um procedimento qualquer no qual, em rigor, nem participou. E porque é que a CRP nos permite fazer isso? Para controlarmos a actividade da AP, porque “ela dispara com a pólvora do rei, e nós é que a damos”.
A CRP também nos fala de uma AP que ouve os particulares, os particulares têm o direito a participar na formação das decisões que lhes dizem respeito (formalidade da audiência prévia do interessado).
A CRP também nos fala de uma AP que actua de forma inteligente e eficiente. O 277º também se refere à actuação eficaz e desburocratizada. Aquela ideia de ter de cumprir a norma e a formalidade só porque a lei diz para cumprir a norma e a formalidade pode ser afastada se a situação exigir que a formalidade não seja cumprida (degradação de formalidade legais em formalidades não essenciais).
A CRP também fala de uma AP que não se furta ao contencioso, ou seja, uma AP que se sujeita a ser objecto de formas de controlo, inclusive contencioso (268º/4/5).
A CRP diz ainda uma coisa essencial, que é o princípio da responsabilidade da AP pelos actos que ela pratica (22º e 271º que afirma a responsabilidade dos funcionários administrativos pelas actuações ilícitas que tenham no exercício das suas funções). O Estado tem de ser responsável pelos danos que causa aos particulares porque os particulares não devem assumir os custos da satisfação do interesse público individualmente. Se o dano for injusto é como se fosse toda a colectividade a causá-lo e se é toda a colectividade que o causa, tem de ser toda a colectividade a responder.

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