A primeira coisa que é preciso dizer,
e que o Prof Vasco da Silva Pereira dá bastante importância, é a ligação entre
a Constituição e a Administração Pública (AP). E que tem a ver com a função
limitadora que as constituições vieram trazer para, designadamente, a actuação
do Estado e, portanto, a consagração dos princípios do Estado de Direito não é
alheia ao movimento do constitucionalismo e como tal a ligação entre
Constituição e Administração Pública é sublinhada pela doutrina.
O Prof Vasco Pereira da Silva salienta
uma expressão típica da doutrina alemã que diz que o Direito Administrativo
(DA) é Direito Constitucional (DC) concretizado, ou seja, o Direito
Administrativo é efectivamente a concretização prática de muitas opções que já
estão tomadas na Constituição e que são indisponíveis para o legislador
ordinário.
No entanto, lá por esta ideia ser
muito referida, não quer dizer que seja inequívoca, há quem ponha em causa a
ideia de que o Direito Administrativo tem essa ligação radical, há que diga que
isso é mais um discurso legitimador. Otto Mayer que disse que a certa altura o
Direito Constitucional passa e o Direito Administrativo fica, ou seja que
quando o chefe é um o Direito Administrativo funciona, mas quando o chefe é
outro, este também funciona.
A ideia de que o Direito Constitucional
passa e o Direito Administrativo fica, é uma ideia que procura denunciar um
ficção da ligação dentre o DA e o DC. Temos que dizer, obviamente, que é
verdade que pode acontecer, e esse fenómeno está relativamente bem documentado
na nossa doutrina administrativa, designadamente no Prof Rogério Soares, que
haja passagem e que haja permanência dos institutos do DA entre sistemas
constitucionais completamente diferentes, aliás, foi exactamente isso que
aconteceu na passagem do chamado Antigo Regime, para o regime liberal. Hoje em
dia a doutrina chama de facto à atenção para que muitos dos mecanismos de DA,
prévios à Revolução Francesa permaneceram no âmbito do novo sistema
constitucional e serviram, precisamente, para fortalecer as conquistas
revolucionárias.
O
DA, desse ponto de vista, é um direito de legitimação também muitas vezes de
sistemas políticos diferentes e é por isso que se pôde dizer, a certa altura,
que o DC passa, as revoluções passam, no fundo o chefe muda, mudam as
concepções essenciais sobre o ordenamento jurídico, mas o DA, aquele que é o
seu aspecto mais técnico, os seus institutos vão permanecendo.
Não
que dizer contudo, que isto seja um fenómeno isento de crítica e alguns casos
não é um fenómeno aceitável. Em muitos casos a manutenção dos institutos que
nasceram ao abrigo de uma determinada constituição política, manifestamente não
podem subsistir no âmbito de outra. Um exemplo muito claro disso em Portugal
foi no âmbito da passagem para a constituição política de 1976, que teve
implicações imediatas e claríssimas do ponto de vista do DA, essencialmente do
ponto de vista do DA do contencioso, porque no âmbito do DA do Estado Novo, que
era um DA, sobretudo de matriz francesa e que se aplicava aquela ideia de que,
por exemplo os particulares só podiam ter acesso aos tribunais administrativos,
ou seja só podiam impugnar uma acto administrativo, depois de terem esgotado
toda a cadeia de recursos hierárquicos, isto é, existia uma ideia clara de
limitação à justiça administrativa que tinha a ver com aquelas concepções
político constitucionais que estavam subjacentes ao regime político da altura.
E também, não era possível, à luz do sistema contencioso administrativo da
altura, o particular valer-se de meios de plena jurisdição, ou seja, estava
limitado, em regra, ao contencioso meramente anulatório.
Portanto,
é verdade que o DA como direito, por vezes, mais técnico, mais concreto, faz
com que os seus institutos, por vezes convivam bem com sistemas constitucionais
diferentes, mas a verdade é que não é necessário assim o ser, como visto no
exemplo da passagem do sistema constitucional do Estado Novo, para o consagrado
na Constituição de 76.
Isto
tudo, de alguma maneira tem um a tradução na Constituição de 76, que é
fortemente interventiva na AP, portanto, a CRP, claramente quis submeter a AP,
porventura por um fenómeno de reacção às práticas administrativas da
Constituição de 33, de uma forma muito clara e vinculativa a determinados princípios
fundamentais do Estado de Direito Democrático.
Isto
traduz-se na existência de um leque de normas sobre a AP e sobre a actividade
administrativa mais geral e sobre o controlo da actividade administrativa, que
estão, essencialmente, mas não apenas, contidos nos artigos 276º e ss da CRP. É
a chamada Constituição da Administração, ou Constituição Administrativa. Estes
artigos contêm um elenco muito significativo de normas relativas à actividade
administrativa e à própria organização e controlo da actividade administrativa,
e das quais vamos ter uma breve ideia antes de estudarmos os princípios
concretos que regulam a actividade administrativa.
Por
outro lado, antes de analisarmos a Constituição administrativa, no pensamento
do Prof Vasco Pereira da Silva, não pode ainda esquecer-se o particular relevo
que tem a afirmação constitucional dos direitos fundamentais para a actividade
da Administração, isto é, se se olhar para a nossa Constituição, esta não
regula a AP só quando está a regular a AP, ou seja, não regula a AP só quando
está a dizer no 266º e ss quais são os princípios e regras que são aplicáveis à
AP. A nossa Constituição, em regra, por exemplo, quando afirma um determinado
conjunto de direitos fundamentais, acompanha essa afirmação na criação de
serviços públicos que são instrumentais para a satisfação desses direitos
fundamentais, ou então acompanham o enunciado direito fundamental da afirmação
de uma estrutura de normas, de uma regulação administrativa em sentido lato,
que vai permitir concretizar esses direitos fundamentais.
Portanto,
quando a CRP afirma, por exemplo, o direito à habitação no 65º/1, faz
acompanhar esse enunciado de um direito fundamental no 2 desse artigo de um
conjunto de políticas públicas, muitas delas prosseguidas e levadas a cabo por
entidades administrativas, ou pelo Estado. Logo a CRP faz acompanhar a
afirmação de direitos fundamentais da obrigação expressa desses direitos
fundamentais e da acção do Estado, ou seja, coloca o Estado ao serviço dos
direitos fundamentais. O que significa que quando a CRP diz esta e outras
coisas está a afirmar que o Estado tem um dever de levar a cabo a satisfação
desses direitos, e as estruturas que levam a cabo essa satisfação são as
estruturas administrativas. Portanto, a CRP também fala sobre a AP quando
comete tarefas ao Estado, sendo estas tarefas instrumentais de direitos
fundamentais. E para o Prof Vasco Pereira da Silva este ponto é essencial.
Uma
Constituição de Estado de direitos fundamentais é, à partida, uma coisa que
traz consigo consequências do ponto de vista da actuação administrativa e a CRP
faz isso claramente, quer do ponto de vista organizacional, que do ponto de
vista substantivo, quer do ponto de vista da garantia dos direitos dos
particulares, a nossa constituição é muito eloquente, muito expressiva a fazer
essa ligação entre o DA e o DC.
Exemplo de uma manifestação prática:
a relevância que a CRP dá ao modelo de contencioso administrativo no 268º/4 e
5, onde diz expressamente e até se refere a meios processuais em concreto que
os particulares podem fazer valer no âmbito da sua relação com a AP. Diz coisas
como por exemplo, que os particulares têm direito à tutela jurisdicional
efectiva face à AP. Mas porque é que a CRP o diz aqui a propósito do 268º se
esta já consta do 20º? Exactamente pela circunstância de antes de 1974 os
tribunais administrativos serem de facto meras extensões da AP. E o que a CRP
de 76 veio dizer foi que estes tribunais eram verdadeiros tribunais, veio
consagrar mecanismos de defesa dos particulares face à AP, porque, como diz o Prof
Vaco Pereira da Silva, os direitos fundamentais concretizam-se através da
justiça administrativa, isto é, o contencioso administrativo, os meios
processuais de controlo da actividade administrativa são particularmente
relevantes do ponto de vista de uma concretização prática dos direitos
fundamentais dos particulares face à AP.
Se se afirmarem os direitos
fundamentais, mas se estes não vierem acompanhados de um sistema de contencioso
administrativo que seja efectivo, que seja suficiente, que seja verdadeiramente
jurisdicional porque independente da AP, não serve de nada essa afirmação.
A
faceta da garantia dos direitos fundamentais dos particulares face à AP é
largamente tutelada pela CRP, como explica o Prof Vasco Pereira da Silva, o Direito
do contencioso administrativo português tem como seu parâmetro de validade o DC.
Para cada norma do código do processo dos tribunais administrativos, tem-se que
confrontar essa norma com o padrão constitucional da relação do contencioso
administrativo e ver se essa norma do código do processo dos tribunais
administrativos está à altura da exigência que a CRP lhe formula.
Quais
são as opções constitucionais relevantes para a compreensão da AP e para a
compreensão do estatuto jurídico da AP?
Desde
logo, a garantia da coexistência dos três sectores de propriedade dos meios de
produção: a CRP garante, expressamente, que há um sector público, privado e um
sector cooperativo dos meios de produção. Esta garantia tem sido considerada
pela doutrina, como uma garantia forte em sentido próprio, ou seja, não há, de
acordo com a CRP uma ideologia do Estado mínimo. O Estado, de acordo com a CRP,
não é mínimo. A garantia do sector público tem precisamente o sentido de
estabelecer que o sector público tem que ser relevante e tem que ser suficiente
para satisfazer que a constituição atribui ao Estado, missões essas que não se
limitam apenas à satisfação dos chamados direitos sociais.
A
CRP prevê uma divisão entre direitos, liberdade e garantias e direitos
económicos, sociais e culturais, e nós podíamos ser tentados a dizer que o DA,
que o Estado é chamado a desempenhar tarefas, sobretudo no âmbito dos direitos
sociais, o que é verdade, mas não podemos esquecer que no âmbito dos direitos, liberdade e garantias, o Estado
também é chamado a desempenhar funções relevantes. Basta pensar, por exemplo,
que o direito à vida e o direito à integridade física, são direitos claramente,
direitos liberdade e garantias, mas que não podem subsistir se não existir uma
estrutura de segurança pública, ou seja, órgãos de polícia, quer de
investigação, quer de segurança, que sejam suficientes para suportar essa
garantia que é a segurança privada, pessoal, a integridade física, a vida, etc.
Portanto
se não existirem corpos policiais, que são entidades administrativas, são
órgãos da administração, verdadeiramente não é satisfeita a tarefa do Estado de
contribuir para a protecção dos direitos liberdades e garantias. Por isso não
se deve ficar com a ideia de que só relativamente aos direitos sociais é que o
Estado é chamado a intervir, esta ideia é afastada pela doutrina com a
afirmação do carácter unitário dos direitos fundamentais. Ainda que a CRP faça
a distinção entre direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos,
sociais e culturais, a verdade é que as garantias não têm só uma dimensão
negativa, de abstenção do Estado, também têm uma dimensão positiva, obrigam o
Estado a fazer coisas, como também os direitos sociais têm dimensões negativas
e positivas, ou seja, os direitos sociais também pedem ao Estado, em algumas
circunstâncias, abstenção, e não apenas direitos a prestações.
A
afirmação dos direitos fundamentais na constituição e a sua compreensão
enquanto direitos fundamentais unitários, exige do Estado uma estrutura de
protecção, de salvaguarda e de promoção dos direitos fundamentais que é
transversal, que é comum a todas as formas de direitos fundamentais e a todos
os direitos fundamentais previstos na CRP.
Quando
a CRP prevê a existência de direitos fundamentais isso implica para o Estado
tarefas que são levadas a cabo através da AP.
Garantias
concretas: existência de serviços públicos ex: serviço público da rádio e
televisão (38º/5), existência da Segurança Social (73º), Serviço Nacional de
Saúde (74º). Até que se mude a CRP, o governo tem de dotas essas estruturas de
instrumentos para elas conseguirem levar a cabo a sua função. É esta a forma de
pensar, quando falamos da relação do DA com a Constituição.
É
à constituição que compete as opções fundamentais em matéria de tarefas do
Estado. Enquanto nós, como comunidade política, assumirmos aquelas normas como
padrões que rege a nossa vida comum, é àquilo que estamos vinculados.
Enfim,
primeiro ponto: a regulação concreta da existência de serviços públicos,
estruturas administrativas de prestação que levam a cabo a satisfação de
necessidades colectivas.
Segundo
ponto: garantia concreta da existência de áreas da via social que são reguladas
pelo DA e ou por entidades administrativas (ex: o 39º impõe a existência de uma
entidade reguladora da comunicação social, esta não é uma criação do
legislador, mas sim uma imposição constitucional, e o legislador constituinte
fez essa imposição dizendo que a comunicação social é objecto de regulação por
uma entidade administrativa independente. Ou seja, a cobertura de uma
determinada área da vida social por regras do DA, em concreto pela acção de um
regulador. Outro exemplo comissão nacional de protecção de dados, é de acordo
com o 35º, uma entidade administrativa independente, mais um campo da vida
social em que o legislador coloca sob a alçada de uma entidade administrativa
independente. Outro exemplo é a imposição constitucional da existência de
planeamento urbanístico 65º/4).
A
CRP regula ainda a AP na medida em que lhe prescreve a existências de
princípios gerais ada actividade administrativa (266º e ss).
De
acordo com o 266º/1 fica claro que o que verdadeira mente define a actividade
da AP é a tarefa de conciliar o interesse público com os direitos dos
particulares. Aliás, há quem diga que a definição do DA é que aquele ramo do
Direito que procura de uma forma directa e assumida a conciliação do interesse
público com os direitos dos particulares, e é o que diz no 266º/1. Não é por
acaso que quando a CRP vai começar a falar sobre a AP, a norma pórtico é uma
norma que começa por dizer que a AP comporta-se, no âmbito da sua actividade,
conciliando interesse público com os direitos dos particulares, e tudo o resto
é uma concretização disto.
A
primeira ideia chave é que a CRP quer que a AP actue conciliando o interesse
público com os direitos dos particulares, o que nos diz que, se o interesse
público não é necessariamente coincidente e não se conforma com os direitos dos
particulares, a AP quando está no âmbito da relação com o particular não pode
esquecer que ali está outra pessoa que não é um mero administrado.
No
266º/2 são enunciados os vários princípios pelos quais se rege a AP.
Normas
acerca da própria organização da AP. São normas em que a CRP tomo posição sobre
como é que a AP deve ser organizada, sobre como é que ela deve ser constituída,
como é que os seus serviços e entidades integrantes devem ser organizados. E a
CRP diz-nos que deve ser descentralizada, desconcentrada, e, à partida de
acordo com o princípio da subsidiariedade (6º da CRP), mas também nos diz que a
AP deve ser estruturada de forma a estar próxima dos administrados (267º).
A
CRP fala-nos de uma AP aberta, os particulares têm acesso à informação
administrativa, os particulares podem olhar para dentro da AP, ou seja, o
princípio chamado do arquivo aberto está consagrado no 267º/1 e juntamente com
o direito do acesso à informação procedimental, também neste artigo, dá-nos a
nota que a AP não é opaca, que é, pelo contrário transparente, podendo um
particular qualquer, ir pedir à AP que lhe dê informação acerca de um
procedimento qualquer no qual, em rigor, nem participou. E porque é que a CRP
nos permite fazer isso? Para controlarmos a actividade da AP, porque “ela
dispara com a pólvora do rei, e nós é que a damos”.
A
CRP também nos fala de uma AP que ouve os particulares, os particulares têm o
direito a participar na formação das decisões que lhes dizem respeito
(formalidade da audiência prévia do interessado).
A
CRP também nos fala de uma AP que actua de forma inteligente e eficiente. O
277º também se refere à actuação eficaz e desburocratizada. Aquela ideia de ter
de cumprir a norma e a formalidade só porque a lei diz para cumprir a norma e a
formalidade pode ser afastada se a situação exigir que a formalidade não seja
cumprida (degradação de formalidade legais em formalidades não essenciais).
A
CRP também fala de uma AP que não se furta ao contencioso, ou seja, uma AP que
se sujeita a ser objecto de formas de controlo, inclusive contencioso
(268º/4/5).
A
CRP diz ainda uma coisa essencial, que é o princípio da responsabilidade da AP
pelos actos que ela pratica (22º e 271º que afirma a responsabilidade dos
funcionários administrativos pelas actuações ilícitas que tenham no exercício
das suas funções). O Estado tem de ser responsável pelos danos que causa aos
particulares porque os particulares não devem assumir os custos da satisfação
do interesse público individualmente. Se o dano for injusto é como se fosse
toda a colectividade a causá-lo e se é toda a colectividade que o causa, tem de
ser toda a colectividade a responder.
Sem comentários:
Enviar um comentário