Lígia Rocha Nº21500
Nota inicial
Apesar dos direitos fundamentais terem sido criados para a defesa do cidadão contra o Estado, devem pressupor a
existência de um poder que os assegure. Contudo, o nosso ordenamento não prevê
uma competência específica do poder executivo para a fiscalização da
constitucionalidade.
“A afirmação plena dos direitos fundamentais de uns não pode fazer-se sem
o prejuízo de valores constitucionais essenciais, que somada à indeterminação
normativa, acaba por gerar contradições”
A questão de Administração deixar de
aplicar leis por entendê-las inconstitucionais por violarem direitos
fundamentais tem criado grande controvérsia na nossa Doutrina[1].
BLANCO DE MORAIS[2]
afirma ser possível a desaplicação da lei pelo Tribunal Administrativo. Em
primeiro lugar, quando há vícios lógicos ou existe uma contradição lógica com
as normas que violem direitos fundamentais e sejam exequíveis por si próprias.
Além disso, a Administração pode desconsiderar a lei e aplicar directamente o
preceito constitucional, cabendo-lhe uma interpretação conforme à constituição.
MELO ALEXANDRINO[3] entende
que não deve ser conferida esta possibilidade à Administração. Por outro lado,
vê-se que o legislador constituinte não quis estender o poder de desaplicação
de normas inconstitucionais à Administração Pública, por ter erguido uma
dificuldade adicional ao submeter a Administração ao princípio da legalidade.
Invoca também um argumento sistemático confrontando a solução dada pelo
legislado aos tribunais que também estão vinculados à lei art.202 nº2 e 203 CRP,
prevendo expressamente o poder de estes desaplicarem normas que infrinjam
regras ou princípios constitucionais art.204 CRP. Semelhante poder jamais
poderá ser pensado para a Administração por razões de certeza e segurança
jurídica. No entanto admite excepções: no caso de leis juridicamente inexistentes; e de leis que configurem uma “grosseira e patente violação” de um
direito liberdade e garantia.
JORGE MIRANDA[4] não
reconhece aos órgãos administrativos qualquer faculdade de fiscalização da
constitucionalidade, tendo em conta que o princípio da legalidade
administrativa é um dos esteios básicos
Estado de direito. Devido à estrutura multifacetada da Administração, a
admissibilidade desta possibilidade poderia levar a vários inconvenientes de
insegurança e de ineficácia. Salienta que nesses casos os agentes
administrativos podem sempre submeter as questão aos órgãos superiores, mas que
até à decisão de inconstitucionalidade permanecerão vinculados à lei, sendo a
responsabilidade do Estado art.22.ºCRP.
VIEIRA DE ANDRADE[5]
entende que a admissão dessa possibilidade geraria uma verdadeira anarquia
administrativa, podendo a utilização errónea da competência causar prejuízos
irrecuperáveis a interesses de particulares ou a interesses públicos relevantes.
Contudo, não deve haver uma presunção absoluta da constitucionalidade das leis
e negar a possibilidade de desaplicar normas inconstitucionais à Administração
seria negar a aplicabilidade directa dos direitos fundamentais. No entanto esta
possibilidade não se deve estender a normas que já tenham sido apreciadas pelo
Tribunal Constitucional e que este não se tenha pronunciado sobre a sua
inconstitucionalidade; que só é admissível a desaplicação em casos de
inconstitucionalidade material e não formal. Por fim, essa faculdade só deve
estar reservada aos órgãos superiores da Administração.
PAULO OTERO[6]
defende que não se trata de a Administração declarar um acto inconstitucional
que seria uma afronta ao modelo de repartição de poderes, mas a admissibilidade
de uma verwerfunskompetenz, ou seja,
de uma competência de rejeição de leis e actos jurídicos violadores dos
direitos fundamentais.
ASSUNÇÃO ESTEVES invoca que a
aplicação desse tipo de normas recairia em nulidade, podendo o particular
recorrer contra os poderes públicos.
GOMES CANOTILHO, a este respeito
diz-nos que leis que violem directamente o conteúdo essencial dos direitos
fundamentais são, na verdade, inexistentes, podendo os particulares exercer o
seu direito de resistência.
Nota conclusiva
Extraímos desta breve análise que a maior parte da Doutrina
nega a possibilidade de desaplicação de normas inconstitucionais à
Administração por razões de segurança e separação de poderes. Por outro lado,
mesmo aqueles que a admitem, são bastante restritivos enumerando vários
requisitos para que a Administração exerça essa faculdade. Entendemos que esta
“lacuna” não é relevante, porque em termos práticos é muito difícil existir uma
lei que viole um direito fundamental, e se tal acontecer existem numerosos
mecanismos, para evitar a sua aplicação.
[1] INGRID PATRÍCIA FÉLIX DA CRUZ, Limites do poder de recusa pela
administração de aplicação da lei por afectação de direitos fundamentais, Teses
ULFD
[2] CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo I, Coimbra
2002
[3] JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais: Introdução geral, Principia,
2007
[4] JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra, 2000
[5] JOSÉ CARLOS VIERA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição
portuguesa de 1976, Almedina, 2004
[6] PAULO OTERO, O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, Almedina,
2007
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