sábado, 27 de abril de 2013

Até onde pode ir a Administração? – A (des)aplicação pela Administração de normas inconstitucionais


Lígia Rocha Nº21500
Nota inicial
Apesar dos direitos fundamentais terem sido criados para a defesa do cidadão contra o Estado, devem pressupor a existência de um poder que os assegure. Contudo, o nosso ordenamento não prevê uma competência específica do poder executivo para a fiscalização da constitucionalidade.

“A afirmação plena dos direitos fundamentais de uns não pode fazer-se sem o prejuízo de valores constitucionais essenciais, que somada à indeterminação normativa, acaba por gerar contradições”

A questão de Administração deixar de aplicar leis por entendê-las inconstitucionais por violarem direitos fundamentais tem criado grande controvérsia na nossa Doutrina[1].
BLANCO DE MORAIS[2] afirma ser possível a desaplicação da lei pelo Tribunal Administrativo. Em primeiro lugar, quando há vícios lógicos ou existe uma contradição lógica com as normas que violem direitos fundamentais e sejam exequíveis por si próprias. Além disso, a Administração pode desconsiderar a lei e aplicar directamente o preceito constitucional, cabendo-lhe uma interpretação conforme à constituição.
MELO ALEXANDRINO[3] entende que não deve ser conferida esta possibilidade à Administração. Por outro lado, vê-se que o legislador constituinte não quis estender o poder de desaplicação de normas inconstitucionais à Administração Pública, por ter erguido uma dificuldade adicional ao submeter a Administração ao princípio da legalidade. Invoca também um argumento sistemático confrontando a solução dada pelo legislado aos tribunais que também estão vinculados à lei art.202 nº2 e 203 CRP, prevendo expressamente o poder de estes desaplicarem normas que infrinjam regras ou princípios constitucionais art.204 CRP. Semelhante poder jamais poderá ser pensado para a Administração por razões de certeza e segurança jurídica. No entanto admite excepções: no caso de leis juridicamente  inexistentes; e de leis que configurem uma “grosseira e patente violação” de um direito liberdade e garantia.
JORGE MIRANDA[4] não reconhece aos órgãos administrativos qualquer faculdade de fiscalização da constitucionalidade, tendo em conta que o princípio da legalidade administrativa é um dos esteios básicos Estado de direito. Devido à estrutura multifacetada da Administração, a admissibilidade desta possibilidade poderia levar a vários inconvenientes de insegurança e de ineficácia. Salienta que nesses casos os agentes administrativos podem sempre submeter as questão aos órgãos superiores, mas que até à decisão de inconstitucionalidade permanecerão vinculados à lei, sendo a responsabilidade do Estado art.22.ºCRP.
VIEIRA DE ANDRADE[5] entende que a admissão dessa possibilidade geraria uma verdadeira anarquia administrativa, podendo a utilização errónea da competência causar prejuízos irrecuperáveis a interesses de particulares ou a interesses públicos relevantes. Contudo, não deve haver uma presunção absoluta da constitucionalidade das leis e negar a possibilidade de desaplicar normas inconstitucionais à Administração seria negar a aplicabilidade directa dos direitos fundamentais. No entanto esta possibilidade não se deve estender a normas que já tenham sido apreciadas pelo Tribunal Constitucional e que este não se tenha pronunciado sobre a sua inconstitucionalidade; que só é admissível a desaplicação em casos de inconstitucionalidade material e não formal. Por fim, essa faculdade só deve estar reservada aos órgãos superiores da Administração.
PAULO OTERO[6] defende que não se trata de a Administração declarar um acto inconstitucional que seria uma afronta ao modelo de repartição de poderes, mas a admissibilidade de uma verwerfunskompetenz, ou seja, de uma competência de rejeição de leis e actos jurídicos violadores dos direitos fundamentais.
ASSUNÇÃO ESTEVES invoca que a aplicação desse tipo de normas recairia em nulidade, podendo o particular recorrer contra os poderes públicos.
GOMES CANOTILHO, a este respeito diz-nos que leis que violem directamente o conteúdo essencial dos direitos fundamentais são, na verdade, inexistentes, podendo os particulares exercer o seu direito de resistência.

Nota conclusiva
Extraímos desta breve análise que a maior parte da Doutrina nega a possibilidade de desaplicação de normas inconstitucionais à Administração por razões de segurança e separação de poderes. Por outro lado, mesmo aqueles que a admitem, são bastante restritivos enumerando vários requisitos para que a Administração exerça essa faculdade. Entendemos que esta “lacuna” não é relevante, porque em termos práticos é muito difícil existir uma lei que viole um direito fundamental, e se tal acontecer existem numerosos mecanismos, para evitar a sua aplicação.


[1] INGRID PATRÍCIA FÉLIX DA CRUZ, Limites do poder de recusa pela administração de aplicação da lei por afectação de direitos fundamentais, Teses ULFD
[2] CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, Tomo I, Coimbra 2002
[3] JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais: Introdução geral, Principia, 2007
[4] JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra, 2000
[5] JOSÉ CARLOS VIERA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, Almedina, 2004
[6] PAULO OTERO, O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, Almedina, 2007

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