Lígia Rocha Nº21500
Considerações Iniciais
O surgimento da Administração prestadora alargou sobretudo o
campo da actuação administrativa. Com efeito, a Administração já não se ocupa
apenas a executar as leis como outrora. Actualmente pode falar-se de uma
Administração dirigida pela lei e não numa Administração que seja mera
executora. Hoje, a Administração, se auto-organiza e administra; legisla com
legitimação legiferante constitucional; pratica actos provados; produz bens,
presta serviços, gere recursos financeiros, relaciona-se com outros entes
estatais. Já não se concebe a administração como uma actividade secundária e
subordinada.
A Administração ao avesso?
A administração centra-se em quatro relações fundamentais[1]
segundo um princípio de dupla subordinação: das instâncias administrativas às
instâncias políticas; das instâncias económicas às instâncias administrativas;
e das instâncias administrativas inferiores às instâncias administrativas
superiores. As relações fundamentais fundam-se ainda num princípio da
separação, segundo um modelo de integração relativa, de modo a evitar uma fuga
para a competência de outros sectores.
A interdependência, no modelo português, torna aceitável a
interpenetração de funções com intersecções mas dentro de determinados limites
básicos constitucionalmente autorizados, ou seja, desde que não atinja o núcleo
essencial de cada uma das funções, o que nos remete à ideia de tarefas-tipo de
cada um dos órgãos de soberania que, em consequência não se poderão deslocar
para outros órgãos, sob pena de usurpação de poder e violação do princípio da
separação de poderes[2]. No
ordenamento jurídico português, o artigo 111.ºCRP garante o princípio da
separação de poderes e revela duas dimensões: uma dimensão negativa
consubstanciada no sistema de freios e contrapesos; e uma dimensão positiva,
visando à racionalização da organização do poder estatal. Contudo, qual o
limite desta racionalização?
Têm surgido fenómenos que despontam uma reacção crítica face
ao Estado, fazendo questionar o habitual e normal funcionamento da
Administração. Há uma falta de legitimidade própria da Administração (os
funcionários são nomeados e não escolhidos por meio de eleição); sendo
concebida como um instrumento do poder político arts.185.º, 111.º e 266.ºCRP.
Tem-se verificado, no âmbito da relação entre instâncias políticas e instâncias
administrativas, um fenómeno de politização da Administração[3], ou
seja, a uma interferência do poder político no funcionamento da Administração,
através da integração crescente dos funcionários nos círculos dirigentes do
partido e do governo. Há uma “confusão” dos papéis das instâncias no que
respeita às nomeações políticas e por sua vez interferências do aparelho
partidário no processo de decisão do aparelho de Estado. A este propósito,
Raymond Aron defende a separação fundamental entre os funcionários
administrativos enquanto entes integrados na função pública e que aspiram a um
Estado dirigido por critérios de racionalidade universal; e os políticos que se
motivam na tomada de decisões pelas suas concepções ideológicas (tecnocracia
emergente).
Face a esta polémica, Gomes Canotilho ressalva que não é
fácil diferenciar as funções da administração e as funções do governo, e o
próprio artigo 199.ºCRP não é muito esclarecedor nesse aspecto. No entanto, a
Doutrina aponta dois critérios de distinção. Segundo o primeiro, as funções do
governo teriam o sentido de serem aquelas exercidas pelos órgãos superiores do
executivo, ao passo que as funções administrativas seriam identificadas como
aquelas desempenhadas pelos órgãos inferiores. De acordo com o segundo
critério, as funções do governo seriam entendidas como funções políticas livres
e iniciais, por outro lado, as funções administrativas seriam aquelas que se
reconduzissem a funções derivadas, executiva e heteronomamente determinadas.
Ambos os critérios são amplamente criticados por Gomes Canotilho argumentando
que seguindo estas concepções um acto administrativo pode transformar-se
funcionalmente em acto de governo, assim como um acto de governo pode ser
funcionalmente valorado como tendo simples significado administrativo.
Esta querela também é denunciada no âmbito de outras áreas: o
processo de segmentação das instâncias administrativas favorece a influência
das instâncias económicas sobre a administração, mediante a criação de serviços
especializados (“parceiros sociais”).
O fenómeno de centralização administrativa traduz-se numa
subordinação sem separação das instâncias administrativas inferiores às
instâncias administrativas superiores. O “pouvoir d’expertise”[4] concorre
com o poder hierárquico detido pelas instâncias administrativas superiores, de
tal modo que o individuo em causa tem à sua mercê uma organização na qual, para
agir, as pessoas dependem da acção deste mesmo indivíduo, das suas decisões ou
omissões. Detendo este poder, as instâncias administrativas inferiores ficam a
poder “controlar” os agentes administrativos situados nos níveis superiores da
organização hierárquica. Estamos perante uma crise do aparelho administrativo
verificando-se um esbatimento da linha de demarcação entre o público e privado
e a intervenção do Estado em domínios que lhe são estranhos com a proliferação
de novas funções que vai concedendo a si próprio.
Face a esta realidade administrativa em mudança, não podemos
deixar de fazer uma análise crítica, de modo a ver se estão assegurados os direitos,
liberdades e garantias e a prossecução interesse público, como fins
inarredáveis do Estado.
Nota Final
É claro estar hoje ultrapassada a concepção liberal da
separação de poderes. O seu esquema rígido de tripartição de poderes não
corresponde às necessidades da nossa sociedade que evolui a um ritmo galopante e
que exige, cada vez mais, respostas imediatas dos órgãos públicos, pressionando
à sua maior flexibilização.
Contudo, urge ponderar em que medida é que a prossecução
destes interesses justifica a dispensa de um equilíbrio fundamental na
demarcação de esferas de competências, imprescindível para a salvaguarda e
garantia contra lesões provenientes de uma eventual actuação parcial da
Administração.
[1] GÉRARDE TIMSIT, «Modèles, Structures et Stratégies De
L’Administration Élements Pour Une Prospective Administrative» in Théorie de L’Administration, Porto,
Económica
[2] BARBOSA DE MELO, in Curso de Ciência de
Administração (Sumário e Notas), Universidade Católica Portuguesa, Curso de
Direito do Porto, 1986
[3] SUORDEM, Fernando Paulo da Silva, O Princípio da Separação de Poderes e Novos
Movimentos Sociais, Coimbra, 1995
Sem comentários:
Enviar um comentário