segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Administração ou corrupção?

                                                                                                                                Lígia Rocha Nº21500
Considerações Iniciais
O surgimento da Administração prestadora alargou sobretudo o campo da actuação administrativa. Com efeito, a Administração já não se ocupa apenas a executar as leis como outrora. Actualmente pode falar-se de uma Administração dirigida pela lei e não numa Administração que seja mera executora. Hoje, a Administração, se auto-organiza e administra; legisla com legitimação legiferante constitucional; pratica actos provados; produz bens, presta serviços, gere recursos financeiros, relaciona-se com outros entes estatais. Já não se concebe a administração como uma actividade secundária e subordinada.

A Administração ao avesso?
A administração centra-se em quatro relações fundamentais[1] segundo um princípio de dupla subordinação: das instâncias administrativas às instâncias políticas; das instâncias económicas às instâncias administrativas; e das instâncias administrativas inferiores às instâncias administrativas superiores. As relações fundamentais fundam-se ainda num princípio da separação, segundo um modelo de integração relativa, de modo a evitar uma fuga para a competência de outros sectores.
A interdependência, no modelo português, torna aceitável a interpenetração de funções com intersecções mas dentro de determinados limites básicos constitucionalmente autorizados, ou seja, desde que não atinja o núcleo essencial de cada uma das funções, o que nos remete à ideia de tarefas-tipo de cada um dos órgãos de soberania que, em consequência não se poderão deslocar para outros órgãos, sob pena de usurpação de poder e violação do princípio da separação de poderes[2]. No ordenamento jurídico português, o artigo 111.ºCRP garante o princípio da separação de poderes e revela duas dimensões: uma dimensão negativa consubstanciada no sistema de freios e contrapesos; e uma dimensão positiva, visando à racionalização da organização do poder estatal. Contudo, qual o limite desta racionalização?
Têm surgido fenómenos que despontam uma reacção crítica face ao Estado, fazendo questionar o habitual e normal funcionamento da Administração. Há uma falta de legitimidade própria da Administração (os funcionários são nomeados e não escolhidos por meio de eleição); sendo concebida como um instrumento do poder político arts.185.º, 111.º e 266.ºCRP. Tem-se verificado, no âmbito da relação entre instâncias políticas e instâncias administrativas, um fenómeno de politização da Administração[3], ou seja, a uma interferência do poder político no funcionamento da Administração, através da integração crescente dos funcionários nos círculos dirigentes do partido e do governo. Há uma “confusão” dos papéis das instâncias no que respeita às nomeações políticas e por sua vez interferências do aparelho partidário no processo de decisão do aparelho de Estado. A este propósito, Raymond Aron defende a separação fundamental entre os funcionários administrativos enquanto entes integrados na função pública e que aspiram a um Estado dirigido por critérios de racionalidade universal; e os políticos que se motivam na tomada de decisões pelas suas concepções ideológicas (tecnocracia emergente).
Face a esta polémica, Gomes Canotilho ressalva que não é fácil diferenciar as funções da administração e as funções do governo, e o próprio artigo 199.ºCRP não é muito esclarecedor nesse aspecto. No entanto, a Doutrina aponta dois critérios de distinção. Segundo o primeiro, as funções do governo teriam o sentido de serem aquelas exercidas pelos órgãos superiores do executivo, ao passo que as funções administrativas seriam identificadas como aquelas desempenhadas pelos órgãos inferiores. De acordo com o segundo critério, as funções do governo seriam entendidas como funções políticas livres e iniciais, por outro lado, as funções administrativas seriam aquelas que se reconduzissem a funções derivadas, executiva e heteronomamente determinadas. Ambos os critérios são amplamente criticados por Gomes Canotilho argumentando que seguindo estas concepções um acto administrativo pode transformar-se funcionalmente em acto de governo, assim como um acto de governo pode ser funcionalmente valorado como tendo simples significado administrativo.
Esta querela também é denunciada no âmbito de outras áreas: o processo de segmentação das instâncias administrativas favorece a influência das instâncias económicas sobre a administração, mediante a criação de serviços especializados (“parceiros sociais”).
O fenómeno de centralização administrativa traduz-se numa subordinação sem separação das instâncias administrativas inferiores às instâncias administrativas superiores. O “pouvoir d’expertise”[4] concorre com o poder hierárquico detido pelas instâncias administrativas superiores, de tal modo que o individuo em causa tem à sua mercê uma organização na qual, para agir, as pessoas dependem da acção deste mesmo indivíduo, das suas decisões ou omissões. Detendo este poder, as instâncias administrativas inferiores ficam a poder “controlar” os agentes administrativos situados nos níveis superiores da organização hierárquica. Estamos perante uma crise do aparelho administrativo verificando-se um esbatimento da linha de demarcação entre o público e privado e a intervenção do Estado em domínios que lhe são estranhos com a proliferação de novas funções que vai concedendo a si próprio.
Face a esta realidade administrativa em mudança, não podemos deixar de fazer uma análise crítica, de modo a ver se estão assegurados os direitos, liberdades e garantias e a prossecução interesse público, como fins inarredáveis do Estado.

Nota Final
É claro estar hoje ultrapassada a concepção liberal da separação de poderes. O seu esquema rígido de tripartição de poderes não corresponde às necessidades da nossa sociedade que evolui a um ritmo galopante e que exige, cada vez mais, respostas imediatas dos órgãos públicos, pressionando à sua maior flexibilização.
Contudo, urge ponderar em que medida é que a prossecução destes interesses justifica a dispensa de um equilíbrio fundamental na demarcação de esferas de competências, imprescindível para a salvaguarda e garantia contra lesões provenientes de uma eventual actuação parcial da Administração.




[1] GÉRARDE TIMSIT,  «Modèles, Structures et Stratégies De L’Administration Élements Pour Une Prospective Administrative» in Théorie de L’Administration, Porto, Económica
[2] BARBOSA DE MELO, in Curso de Ciência de Administração (Sumário e Notas), Universidade Católica Portuguesa, Curso de Direito do Porto, 1986
[3] SUORDEM, Fernando Paulo da Silva, O Princípio da Separação de Poderes e Novos Movimentos Sociais, Coimbra, 1995
[4] MICHEL CROZIER, Le phènomene bureaucratique, Éd. Du Seiul, 1963

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