domingo, 11 de novembro de 2012

Uma Administração silente: o valor da acção tácita da Administração

                                                                                                                      Lígia Rocha Nº21500
Notas Preliminares
A Doutrina tem por hábito integrar esta temática como subespécie de delegação de competências. Contudo, tendo em conta o conceito de delegação de competências que consiste no acto pelo qual o órgão de uma pessoa colectiva envolvida no exercício de uma actividade administrativa pública, normalmente competente em determinada matéria e devidamente habilitado por lei, possibilita que outro órgão ou agente pratiquem actos administrativos sobre a mesma matéria. Esta definição faz notar uma certa incompatibilidade com a figura da delegação tácita.


“O próprio silêncio assume um temível sentido”
                                                         Albert Camus
No mesmo sentido, Freitas do Amaral[1] considera imprescindível que o acto de delegação seja expresso, conclui que esta acção tácita não é uma espécie de delegação de poderes, mas uma espécie de desconcentração originária. Ao invés, Caupers defende que a figura da acção tácita em tudo idêntica à da delegação de competências, aplicando-se-lhe o regime próprio desta.
Primeiramente, é importante distinguir entre a habilitação legal, ou seja, a disposição que distribui originariamente as competências; do comportamento omissivo do delegante, que se traduz na vontade que este manifesta em renunciar temporariamente ao exercício de uma competência posta por lei a seu cargo. Aqui, estamos a referir-nos a esta última figura, cujo valor jurídico é discutido na Doutrina. Num prisma, uma posição que ficciona a existência de um acto administrativo; por outro lado uma concepção que recusa atribuir à omissão do “delegante” qualquer relevância jurídica. Por sua vez, Caupers[2] considera como elemento decisivo na figura da delegação de competências, não o acto de delegação em si, mas antes a relevância da vontade do delegante. Se a lei considera determinados poderes delegados, então o “delegante”, ao nada fazer está a concordar com o exercício dos mesmos pelo delegado, sendo esta a relevância jurídica da sua omissão. Este entendimento já teve aplicação pela jurisprudência do STA[3] onde é dito que “a delegação tácita assenta na vontade presumida do órgão da Administração de delegar alguns dos seus poderes…”. Caupers parece qualificar o comportamento omissivo como consubstanciando um verdadeiro acto administrativo, ainda que não expresso, bastando para isso uma omissão juridicamente relevante. Para que um determinado comportamento, ainda que tácito seja juridicamente relevante, é preciso que dele decorra uma alteração no mundo do Direito, ou seja que produza efeitos jurídicos. A questão não está em saber se através de uma omissão, um órgão pode ou não alterar alguma coisa na situação jurídica do seu autor ou na do seu destinatário.
Observemos então se podemos, no Código do Procedimento Administrativo, aplicar algumas disposições do regime de delegação de competências por analogia no âmbito da delegação tácita de competências. A delegação tácita corresponde a uma vontade em delegar competências suas num outro órgão, promovendo a desconcentração da actividade administrativa. Por exemplo, um órgão através de um comportamento omisso, renuncia, durante o período em que mantiver esse comportamento à avocação dessas mesmas competências. Esta situação tem relevância quando o legislador pretende que determinadas competências sejam exercidas por um órgão colegial no seu conjunto, e este apesar de continuar a ser titular das mesmas, se nada faz, permitindo o exercício por um único membro desse órgão exclusivamente.
Dentro do regime jurídico de delegação de competências do CPA, vamos excluir o que diz respeito à delegação expressa de competências, centrando-nos no art.37.ºss CPA. Na delegação tácita, a publicidade do acto suscita dúvidas pela omissão da qualidade de “delegado”, pois este está a agir não ao abrigo de um acto de delegação, mas antes ao abrigo de uma norma legal que o habilita para o exercício daquelas competências art.37.ºnº2 CPA. No que respeita à recorribilidade do acto[4] se ocorrer um exercício abusivo de um órgão que menciona a sua qualidade de titular de competências postas por um órgão que menciona a sua qualidade de titular de competências por efeitos de uma delegação tácita, os vícios que daí decorrem em nada se vêm alterados pela menção ou omissão, podendo o particular propor uma acção administrativa especial, na qual o tribunal virá a anular o acto com fundamento em incompetência[5]. Por outro lado, se o “delegado” se encontrar habilitado a exercer determinadas competências e não o mencionar aquando a prática do acto, o particular já não pode defender-se com o seu desconhecimento tendo em conta que essa distribuição de competências se encontra na lei. Revela-se uma falta de regulamentação pelo legislador nesta situação em que o órgão que invoca o exercício de competências tacitamente delegadas por lei, mas que naquele momento, por vontade do “delegante” esse exercício já se havia extinguido, não há maneira de o particular ter conhecimento dessa situação. Como salvaguardar neste caso os direitos do particular?
Entendemos que o art.39.º CPA que consagra os poderes do delegante por estar fundamentado no princípio a maiori ad minus (quem pode revogar os actos praticados pelo delegado, pode também orientar o seu exercício), não se aplica a uma situação de delegação tácita por não haver esta possibilidade de revogação. O fundamento do poder de revogação da delegação por parte do delegante é o de ter sido ele a praticar o acto da delegação. O mesmo não se passa na delegação tácita em que a relação de delegação não é constituída em virtude da lei.
Dito isto, onde integrar esta figura da acção tácita da Administração? Ela manifesta uma ausência da característica nuclear do regime de delegação de competências: o carácter intuitus personnae. Desta forma, ou se nega que o carácter intuitus personnae seja um aspecto essencial da figura da delegação de competências, podendo esta incluir outras subfiguras, como a dita delegação tácita; ou se rejeita a concepção da acção tácita como uma espécie de delegação autonomizando-se a sua figura[6].

Conclusões
Sob a mesma matéria estes vários autores concedem nomenclaturas diferentes, o que torna mais interessante a investigação dos pilares que fundamentam cada uma delas. Salienta-se que recentemente tem havido um movimento que contraria a Doutrina tradicional, arguindo que estamos perante duas realidades diferentes e não perante uma espécie (acção tácita) que se inclua no género da delegação administrativa de competências. De todo o modo, onde quer que cada a autor integre esta “acção tácita”, evidencia-se que estes actos que façam cessar ou que onerem o exercício de competências, trazem implicações significativas na relação entre os órgãos, alertando os juristas para a existência de uma brecha que terá escapado ao legislador.




[1] Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2007
[2] João Caupers, Direito Administrativo, Editorial Notícias, 1995
[3] Acórdão de 15 de Março de 1990, processo nº26 863
[4] André Gonçalves Pereira, Da delegação de poderes em Direito Administrativo, 1960
[5] José Carlos Vieira de Andrade, «A “revisão” dos actos administrativos no direito português», in Estudos sobre o código do procedimento administrativo, INA, nº9/10, 1994
[6] Posição defendida por Ravi Afonso Pereira, in Contributo para o estudo da delegação dita tácita de competências, FDUNL Nº9 - 2002

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