domingo, 25 de novembro de 2012

Eu quero, posso e mando: os poderes discricionários da Administração

                                                                                                     Lígia Rocha Nº21500
Nota introdutória
A nova formatação da actividade administrativa que autoriza a designar o Estado como um Estado administrativo, tendo inerente a ideia de estado de direito vinculado ao princípio da legalidade por parte de todos os poderes públicos, tanto na sua vertente de primado da lei, como na de reserva da lei, exigiu que se conferisse à Administração certa autonomia, plasmada numa margem de livre decisão administrativa associada aos temas de uma esfera de liberdade, do poder discricionário, da interpretação e da aplicação dos conceitos vagos e indeterminados, no desempenho das tarefas que lhe incumbem realizar. Esta problemática pode ser exemplificada nos chamados poderes discricionários da administração.

“Quanto maior é o poder, mais perigoso é o abuso”
                                                              Edmund Burke
Quando a lei deixa uma amplitude à Administração quanto ao modo de melhor atingir o interesse público, dir-se-á que existe aí um poder discricionário. A discricionariedade administrativa traduz-se na liberdade de a Administração escolher a melhor decisão para realizar o fim visado pela norma que atribuiu o poder discricionário. Isto é, a amplitude que é conferida à Administração para encontrar a melhor solução para a prossecução do interesse público no caso concreto. Em geral, a interpretação enquanto actividade jurídica, não é arbitrária, mas antes uma actividade vinculada a determinar a vontade do legislador expressa na lei. Contudo, no âmbito do direito administrativo, no que respeita a conceitos vagos e indeterminados a lei confere à Administração a liberdade de escolher um sentido. Nestes casos, a interpretação de um conceito vago e indeterminado não se afigura como uma actividade totalmente vinculada: a lei faz depender a concretização do conceito de uma valoração baseada numa prognose do órgão da Administração. Nesta zona de incerteza do conceito, é concedido à Administração Pública uma área de escolha na concretização desse conceito, gozando o órgão decisor de uma autonomia na escolha de decisão. Salienta-se que está em causa uma discricionariedade no processo interpretativo e não uma interpretação discricionária. A este respeito, Paulo Otero ao verificar a existência de uma margem de livre apreciação na concretização de certos conceitos vagos e indeterminados, defende que existe aqui uma área de discricionariedade no processo interpretativo. David Duarte[1] entende que a margem de livre decisão administrativa reside na auto-vinculação administrativa com as respectivas normas que estabeleçam parâmetros fixos de preenchimento da abertura normativa que concede uma zona de liberdade na decisão, isto é, uma auto-vinculação administrativa por normas genéricas. Este mecanismo auto-vinculatório faz com que ao decidir, ao abrigo de uma margem de discricionariedade relevante no conteúdo da decisão, na qual é incorporado pelo decisor administrativo um conjunto de elementos que se tornam dentro do mesmo acto pressupostos hipotéticos que vão originar como consequência deste poder discricionário um efeito de normatização.
A exigência de um Estado social de Direito, o desenvolvimento de uma Administração prestadora, vai levar a que a área de discricionariedade não se limite ao conteúdo de decisões, e se estenda[2] à apreciação e ponderação de factos e interesses, bem como da harmonização do interesse público, comportando um amplo espaço de conformação, produzindo o fenómeno de discricionariedade administrativa. Há no entanto uma limitação constitucional a esta discricionariedade consagrada no art.112.º nº6 CRP no qual impera uma proibição de interpretação e integração constitucional de actos da função legislativa por parte da administração. Desta forma, a expansão do poder discricionário é operada pela possibilidade através da discricionariedade criativa, aditar pressupostos da norma secundária, desde que respeite os princípios da igualdade, da tutela da confiança e da tutela efectiva.
A prioridade normativa da Constituição exige que a Administração não viole normas constitucionais e paute a sua actividade pelos valores plasmados nos princípios constitucionais. A Administração está submetida ao princípio da legalidade na medida em que só pode agir no exercício das suas funções, com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos.
No entanto, a Administração Pública dispõe de um poder de rejeição de normas quando estas se apresentarem desconformes à Constituição e quando não exista precedência de decisão do Tribunal Constitucional não declarativa da inconstitucionalidade em causa. Face ao art.266.ºCRP, a Administração pode deixar de cumprir leis fundamentando-se numa pretensa inconstitucionalidade. Realce-se que esta situação leva a uma espécie de “fiscalização difusa administrativa”[3]. Face a esta problemática, Bachof apela ao princípio da evidência, não se colocando a questão tendo em conta que a Administração deve comprovar a constitucionalidade das normas a aplicar. Vieira de Andrade entende que estamos perante um conflito entre princípios constitucionais: de um lado o princípio da constitucionalidade; por outro lado o princípio constitucional da legalidade da Administração, defendendo que caso se verifique a inconstitucionalidade da norma, deve prevalecer o princípio da vinculação constitucional directa da Administração. Jorge Miranda[4] nega este poder à Administração, não só pela sua estrutura, mas também pela falta de uma norma atributiva de competência. A este respeito, Gomes Canotilho e Vital Moreira só admitem esta excepção ao princípio da obediência à lei se se verificar quando a inconstitucionalidade for flagrante e manifesta. Ainda com grandes reservas por parte da Doutrina, não podemos deixar de pensar que no limite, pode a Administração adoptar comportamentos tendo como único critério os seus interesses, o que torna a existência destes poderes discricionários uma ideia tanto ou quanto perturbante.

Considerações Finais
O poder discricionário da Administração não deve ser visto como uma espécie de “criminalidade tolerada”[5]. Afigura-se óbvio ser necessário atribuir uma margem mínima de liberdade à Administração, mas só nos termos e limites determinados por lei. O problema está nas situações em que a lei pouco ou nada diz, deixando uma grande margem de liberdade de decisão à Administração que usará os critérios que em cada caso entender como mais adequados à prossecução do “interesse público”.



[1] David Duarte, Justiça Administrativa
[2] Paulo Otero, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1992
[3] Pedro Marchão Marques, Governo e Poder Administrativo, Lisboa, 1998
[4] Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, II, 2ªEd., 1987
[5] Sérvulo Correia e Rui Medeiros, Restrições aos poderes do governo em matéria de reconhecimento e de alteração dos estatutos das fundações de direito privado, in Revista O.A., Ano62, II – Lisboa, Abril 2002

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