Lígia Rocha Nº21500
Nota introdutória
A nova formatação da actividade administrativa que autoriza a
designar o Estado como um Estado administrativo, tendo inerente a ideia de
estado de direito vinculado ao princípio da legalidade por parte de todos os
poderes públicos, tanto na sua vertente de primado da lei, como na de reserva
da lei, exigiu que se conferisse à Administração certa autonomia, plasmada numa
margem de livre decisão administrativa associada aos temas de uma esfera de
liberdade, do poder discricionário, da interpretação e da aplicação dos
conceitos vagos e indeterminados, no desempenho das tarefas que lhe incumbem
realizar. Esta problemática pode ser exemplificada nos chamados poderes
discricionários da administração.
“Quanto maior é o
poder, mais perigoso é o abuso”
Edmund Burke
Quando a lei deixa uma amplitude à Administração quanto ao
modo de melhor atingir o interesse público, dir-se-á que existe aí um poder
discricionário. A discricionariedade administrativa traduz-se na liberdade de a
Administração escolher a melhor decisão para realizar o fim visado pela norma
que atribuiu o poder discricionário. Isto é, a amplitude que é conferida à
Administração para encontrar a melhor solução para a prossecução do interesse
público no caso concreto. Em geral, a interpretação enquanto actividade
jurídica, não é arbitrária, mas antes uma actividade vinculada a determinar a
vontade do legislador expressa na lei. Contudo, no âmbito do direito
administrativo, no que respeita a conceitos vagos e indeterminados a lei
confere à Administração a liberdade de escolher um sentido. Nestes casos, a
interpretação de um conceito vago e indeterminado não se afigura como uma
actividade totalmente vinculada: a lei faz depender a concretização do conceito
de uma valoração baseada numa prognose do órgão da Administração. Nesta zona de
incerteza do conceito, é concedido à Administração Pública uma área de escolha
na concretização desse conceito, gozando o órgão decisor de uma autonomia na
escolha de decisão. Salienta-se que
está em causa uma discricionariedade no processo interpretativo e não uma
interpretação discricionária. A este respeito, Paulo Otero ao
verificar a existência de uma margem de livre apreciação na concretização de
certos conceitos vagos e indeterminados, defende que existe aqui uma área de
discricionariedade no processo interpretativo. David Duarte[1]
entende que a margem de livre decisão administrativa reside na auto-vinculação
administrativa com as respectivas normas que estabeleçam parâmetros fixos de
preenchimento da abertura normativa que concede uma zona de liberdade na
decisão, isto é, uma auto-vinculação administrativa por normas genéricas. Este
mecanismo auto-vinculatório faz com que ao decidir, ao abrigo de uma margem de
discricionariedade relevante no conteúdo da decisão, na qual é incorporado pelo
decisor administrativo um conjunto de elementos que se tornam dentro do mesmo
acto pressupostos hipotéticos que vão originar como consequência deste poder
discricionário um efeito de normatização.
A exigência de um Estado social de Direito, o desenvolvimento
de uma Administração prestadora, vai levar a que a área de discricionariedade
não se limite ao conteúdo de decisões, e se estenda[2] à
apreciação e ponderação de factos e interesses, bem como da harmonização do
interesse público, comportando um amplo espaço de conformação, produzindo o
fenómeno de discricionariedade
administrativa. Há no entanto uma limitação constitucional a esta
discricionariedade consagrada no art.112.º nº6 CRP no qual impera uma proibição
de interpretação e integração constitucional de actos da função legislativa por
parte da administração. Desta forma, a expansão do poder discricionário é
operada pela possibilidade através da discricionariedade criativa, aditar
pressupostos da norma secundária, desde que respeite os princípios da
igualdade, da tutela da confiança e da tutela efectiva.
A prioridade normativa da Constituição exige que a
Administração não viole normas constitucionais e paute a sua actividade pelos
valores plasmados nos princípios constitucionais. A Administração está
submetida ao princípio da legalidade na medida em que só pode agir no exercício
das suas funções, com fundamento na lei e dentro dos limites por ela impostos.
No entanto, a Administração Pública dispõe de um poder de
rejeição de normas quando estas se apresentarem desconformes à Constituição e
quando não exista precedência de decisão do Tribunal Constitucional não
declarativa da inconstitucionalidade em causa. Face ao art.266.ºCRP, a
Administração pode deixar de cumprir leis fundamentando-se numa pretensa
inconstitucionalidade. Realce-se que esta situação leva a uma espécie de
“fiscalização difusa administrativa”[3].
Face a esta problemática, Bachof apela ao princípio da evidência, não se
colocando a questão tendo em conta que a Administração deve comprovar a
constitucionalidade das normas a aplicar. Vieira de Andrade entende que estamos
perante um conflito entre princípios constitucionais: de um lado o princípio da
constitucionalidade; por outro lado o princípio constitucional da legalidade da
Administração, defendendo que caso se verifique a inconstitucionalidade da
norma, deve prevalecer o princípio da vinculação constitucional directa da
Administração. Jorge Miranda[4] nega
este poder à Administração, não só pela sua estrutura, mas também pela falta de
uma norma atributiva de competência. A este respeito, Gomes Canotilho e Vital
Moreira só admitem esta excepção ao princípio da obediência à lei se se
verificar quando a inconstitucionalidade for flagrante e manifesta. Ainda com
grandes reservas por parte da Doutrina, não podemos deixar de pensar que no
limite, pode a Administração adoptar comportamentos tendo como único critério
os seus interesses, o que torna a existência destes poderes discricionários uma
ideia tanto ou quanto perturbante.
Considerações
Finais
O poder
discricionário da Administração não deve ser visto como uma espécie de
“criminalidade tolerada”[5].
Afigura-se óbvio ser necessário atribuir uma margem mínima de liberdade à
Administração, mas só nos termos e limites determinados por lei. O problema
está nas situações em que a lei pouco ou nada diz, deixando uma grande margem
de liberdade de decisão à Administração que usará os critérios que em cada caso
entender como mais adequados à prossecução do “interesse público”.
[1] David Duarte, Justiça Administrativa
[2] Paulo Otero, Conceito e Fundamento da
Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1992
[3] Pedro Marchão Marques, Governo e Poder Administrativo, Lisboa,
1998
[4] Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, II, 2ªEd., 1987
[5] Sérvulo Correia e Rui Medeiros, Restrições aos poderes do governo em matéria
de reconhecimento e de alteração dos estatutos das fundações de direito privado,
in Revista O.A., Ano62, II – Lisboa, Abril 2002
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