A discricionariedade é um poder
derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração
de escolher uma solução dentre uma série de soluções juridicamente admissíveis.
Trata-se de uma decisão livre fundada em razões de mérito (conveniência,
oportunidade, boa administração) e, por isso, insusceptível de fiscalização
contenciosa.
Este pode vr por vezes é
confundido com a utilização de conceitos jurídicos indeterminados. Conceitos
indeterminados são aqueles cujo conteúdo e extensão são incertos ou que não
permitam comunicações claras quanto ao seu conteúdo, seja por polissemia,
vaguidade, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento, nas palavras do professor
FREITAS DO AMARAL. Esta situação é denominada, como refere MARIA LUÍSA DUARTE,
como discricionariedade imprópria e que se refere a todas as realidades, que
não cabendo na discricionariedade pura ou volitiva, têm idêntico regime
jurídico. Aqui se inserem o uso de conceitos indeterminados, a
discricionariedade técnica, a liberdade probatória e a justiça administrativa.
Em Portugal, vários autores
tomaram posição nesta matéria. Para SÉRVULO CORREIA, os conceitos
indeterminados inserem-se na esfera da discricionariedade técnica, quando a lei
incumbe a administração de proceder à interpretação da lei ou a um juízo
cognitivo, de existência de factos. A verdadeira discricionariedade é uma
“liberdade atribuída à Administração, de escolher condutas igualmente licitas”.
O problema está na delimitação da fronteira entre a enunciação legal dos
pressupostos do acto administrativo e a utilização de tais conceitos como
fórmula técnica e destinada a reconhecer à Administração liberdade na escolha
de alguns pressupostos. O autor defende que a atribuição de discricionariedade
pode ser determinada pela interpretação dos conceitos indeterminados. GONÇALVES
PEREIRA distingue interpretação de discricionariedade. Esta existe apenas
quando a norma previamente confere valor jurídico a qualquer actuação do agente
dentro de uma série de actuações possíveis, desde que a intenção do agente seja
a prossecução do fim legal. Os conceitos indeterminados, mesmo carecidos de
interpretação resultariam apenas em poderes vinculados, tal como os restantes
conceitos técnicos. ESTEVES OLIVEIRA já separa com mais dificuldade os conceitos
indeterminados da discricionariedade uma vez que defende que alguns conceitos
indeterminados (como interesse público, necessidade, oportunidade) contêm a
atribuição de um poder discricionário à Administração. Mas nos casos em que a
lei ou não quis atribuir esse poder ou seja dúbia a verdade intenção do
legislador, toma-se a posição contrária. o problema coloca-se quando é
necessário saber que casos são esses. AFONSO QUEIRÓ começou por defender que a
discricionariedade só existia quando atribuída deliberadamente pelo legislador;
os conceitos indeterminados eram simplesmente produtos da impossibilidade
prática ou dificuldade técnica com que o legislador frequentemente se
encontrava, de enunciar, sem rigor, as circunstâncias em que a Administração
podia exercer os seus poderes. Assim os órgãos teriam de proceder a uma
interpretação da norma, mas estar-se-ia sempre no domínio do poder vinculado.
Mas em 1976, o autor passa a defender como certos conceitos discricionários, o
interesse público, a urgência, a razoabilidade, que atribuem à Administração
uma faculdade de valorar livremente os comportamentos susceptiveis, que uma vez
acolhidos e realizados, servirem à realização do fim protegido. Por fim,
FREITAS DO AMARAL, distingue a liberdade probatória – situações em que a lei
reconhece à Administração uma margem livre de apreciação das provas com o dever
de encontrar uma única solução correcta, não existindo controlo jurisdicional
dada a inconveniência de substituir a um juízo problemático da Administração,
um outro juízo do tribunal; a discricionariedade técnica – que integra as
decisões da Administração que são tomadas com base em estudos prévios de
natureza técnica e segundo critérios extraídos de normas técnicas e
científicas, também não existindo controlo jurisdicional pelas mesmas razões;
por fim distingue a justiça administrativa que se reporta aos casos em que a
Administração é chamada a proferir decisões essencialmente baseadas em
critérios de justiça material (exemplo: classificações atribuídas por júris de
exames). As realidades que o professor FREITAS DO AMARAL designa como
discricionariedade impropria reconduzem-se ao emprego e consequente
preenchimento de conceitos vagos e indeterminados pela Administração.
No que se refere à relação entre
conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade, distinguem-se duas
correntes de pensamento:
i)
Monismo metodológico: assimila a valoração de
conceitos indeterminados à discricionariedade pura ou volitiva. O poder
discricionário assenta sempre na liberdade ou autonomia do preenchimento
valorativo de conceitos vagos ou indeterminados.
Podem-se distinguir várias fases:
a)
A Administração, ao valorar um conceito jurídico
de contornos imprecisos, agia como técnico do interesse público, de tal forma
que um posterior controlo judicial representaria apenas um novo e não menos
subjectivo juízo técnico, com flagrante violação do princípio da separação de
poderes. É a teoria da dupla administração.
b)
A Administração admite que, em certos casos
apreensíveis pela via interpretativa, o legislador tenha usado os conceitos
indeterminados em termos vinculantes, sem intenção de reconhecer à
Administração uma margem livre de apreciação.
c)
A Administração admite a impossibilidade de
distinguir na norma os pressupostos de natureza vinculante e a
discricionariedade. Desta premissa resulta uma concepção unitária das duas
figuras. Nega a existência de poderes discricionários, insusceptíveis, por
natureza, de censura judicial quanto ao mérito da decisão. MARIA LUÍSA DUARTE
critica esta posição, uma vez que reduz a discricionariedade a um mero problema
de interpretação e aplicação da norma.
Esta corrente
já pouco (ou nenhum) apoio tem nos dias de hoje. Existem diversos obstáculos
que não lhe dão a coerência necessária. Podem-se distinguir os principais:
a)
O monismo ignora a diferença entre conceitos
classificatórios e conceitos indeterminados. A interpretação e aplicação dos
primeiros apresenta sempre a mesma natureza objectivante, sendo indiferente o
carácter administrativo ou judicial do órgão aplicador. Desta forma, os
argumentos da dupla administração e da violação da separação de poderes perdem
coerência.
b)
De acordo com a concepção unitária da norma, a
previsão e a estatuição de uma norma possuem uma conexão estreita mas não
significa que a determinação dos pressupostos da previsão seja livre e
discricionária. Esta determinação pode sim, ser tendencialmente reconduzida à
valoração de conceitos indeterminados e não ao exercício de poderes
discricionários.
c)
Só a diferenciação conceptual e regimental entre
discricionariedade e conceitos indeterminados pode assegurar, em primeiro lugar
a liberdade de decisão ligada ao poder discricionário e a insusceptibilidade do
seu controlo judicial e, em segundo lugar, a plena sindicabilidade dos
conceitos classificatórios bem como a diferença de fundamentos e de regime.
Ainda é
preciso fazer nota à relação que esta matéria tem com o princípio da
proporcionalidade. Este pode ser desmontado em três vertentes: a necessidade, a
adequação e o equilíbrio. Apenas uma delas – a adequação – está apta a vincular
a concretização de conceitos verdadeiramente indeterminados. O exercício de
poderes discricionários puros deve observar todas as três.
ii)
Dualismo radical
- Radical: defende que a concretização de qualquer
conceito indeterminado é sempre actividade vinculada porque o intérprete deve
procurar a única solução juridicamente correcta. Esta tese não procede, uma vez
que só considera os conceitos classificatórios.
- Mitigado: para esta corrente, a concretização dos
conceitos indeterminados difere da discricionariedade por serem duas
modalidades de livre apreciação e decisão administrativa distintas conceptual e
regimentalmente (excluindo os conceitos classificatórios que se inserem na
esfera da vinculação).
Para se proceder à distinção dos
conceitos indeterminados e da discricionariedade é preciso traçar primeiro, os
aspectos que os dois institutos têm em comum:
A – Fonte normativa: toda a
margem livre de decisão administrativa resulta de uma norma jurídica. É a maior
ou menor abertura de uma norma do “bloco de legalidade” que confere à
Administração uma margem de autonomia.
B – Juízo de prognose: SÉRVULO
CORREIA define-o como um juízo de estimativa sobre futura actuação de uma
pessoa (baseada na valoração das suas qualidades), sobre a futura utilização de
uma coisa ou sobre o futuro desenvolvimento de um processo social. Este juízo
contém um ineliminável grau de subjectivismo mas que pode ser objectivado na
medida do possível. Esta transformação objectiva é um imperativo de Boa Administração.
Neste esforço assumem papel central, as chamadas regras de experiência, às
quais a Administração tem de recorrer quando faltarem melhores indícios. Ao
usar-se a experiência adquirida no passado para avaliar a evolução futura,
está-se a reduzir a margem do subjectivismo inerente aos juízos da prognose.
Em contrapartida, a distinção
entre as duas figuras pode ser estabelecida a partir de duas teorias conexas.
A – Teoria do completamento da
previsão (aberta da norma): quer nas hipóteses de discricionariedade quer nas
de valoração de conceitos verdadeiramente indeterminados, o que está em causa é
uma operação que visa completar, concretizar ou precisar o disposto na previsão
da norma, na qual se subsume a situação concreta. A diferença encontra-se
apenas nos critérios e em regras diferentes para os dois casos. Esta teoria é
usada pelas duas correntes acima referidas.
i)
Para o monismo metodológico, é usada para
justificar a unidade e indiferenciação das duas figuras, uma vez que a
necessidade de completar a previsão surge em ambas. Como refere VIEIRA DE
ANDRADE, a lei é obrigada a refugiar-se em conceitos imprecisos ao programar a
intervenção administrativa, uma vez que o alargamento das funções sociais do
Estado faz surgir um conjunto vasto de diferenciados de situações que tornam
impossível ao legislador definir, com clareza e abstracção, as condições de
verificação do interesse público. Assim, defendendo a impossibilidade de
distinguir nitidamente a previsão e a estatuição de uma norma, falam em
discricionariedade em sentido amplo, que abrange os efeitos, o processo e as
condições de decisão (incluindo a identificação do interesse público), quando a
lei não defina de modo preciso as circunstancias que o revelam. A
discricionariedade em sentido amplo divide-se então em discricionariedade pura
ou volitiva – localizada sobretudo na estatuição da norma – e discricionariedade
cognitiva – situada na previsão da norma e decorrente da utilização pela lei de
conceitos vagos e indeterminados.
ii)
Para o dualismo metodológico, o completamento da
previsão faz-se de acordo com técnicas diferentes. No caso de um poder
discricionário a lei define que se se verificarem os pressupostos P1 e P2, o
órgão administrativo pode atribuir um subsídio a uma empresa particular.
BERNARDO AYALA, define a vontade do órgão administrativo como um terceiro
pressuposto. Fala-se então de um alargamento da previsão em termos conjuntivos. No caso da apreciação de
conceitos vagos e indeterminados, a situação é outra: se se verificarem os
pressupostos P1, P2 e (P3 ou P4),
deve ser atribuído um subsidio. Já não existe discricionariedade mas há ainda
uma certa margem de autonomia. Aqui a alargamento é disjuntivo, conjugando-se a permissão de ampliação do campo de
aplicação da norma com a averiguação do seu conteúdo semântico.
B – Teoria da ponderação
valorativa de interesses concorrentes: esta ponderação tem como escopo
privilegiar algum ou alguns interesses considerados mais consentâneos com o
interesse público específico salvaguardado pelo legislador através da concessão
de uma margem livre de direito. A margem livre de decisão dada pela abertura da
previsão da norma pressupõe um juízo de prognose mas não abrange sempre a
ponderação de interesses. É aqui que as duas figuras se distinguem: enquanto o
exercício de poderes discricionários passa pela decisão de um conflito entre os
interesses em concorrência no caso concreto (podendo a Administração escolher o
melhor entre os legalmente admissíveis, procedendo a um raciocínio
comparativo), na valoração de conceitos verdadeiramente indeterminados existe
uma decisão isolada (não comparativa) de prognose sobre um elemento da previsão
normativa, limitando-se a um exame da adequação de um certo meio numa
prespectiva de futuro. O preenchimento de um conceito indeterminado é uma
operação de valoração feita isoladamente, sem comparações. Tratando-se de um
problema de interpretação criativa, reconduzindo ou não a situação concreta à
norma jurídica.
Ainda será importante fazer
referência à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no que se refere a
este problema e que está longe de um entendimento geral. Por vezes a confusão é
tão grave que se chegam a conclusões contraditórias:
Caso: a lei dispõe que as
autoridades portuguesas só devem conceder asilo político a estrageiros e
apátridas se estes estiverem gravemente ameaçados de perseguição ou se
recearem, com razão, ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, opiniões
politicas, etc.
i)
Acordão STA de 21/1/86: a apreciação da
existência ou não de um “receio razoável” de ser perseguido consubstancia o
exercício de poderes discricionários.
ii)
Acordão STA de 18/2/88: decide-se que a
Administração age vinculadamente no âmbito da interpretação de conceitos
indeterminados, embora nesses casos não possa haver fiscalização contenciosa.
As expressões “gravidade da ameaça” ou “razoabilidade do receio” não atribuem à
Administração a liberdade de escolha de soluções possíveis, porquanto conferem
aos interessados um direito de asilo garantido constitucionalmente desde que os
pressupostos descritos na lei se verifiquem no caso concreto.
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