quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Conceitos jurídicos indeterminados e poder discricionário


A discricionariedade é um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução dentre uma série de soluções juridicamente admissíveis. Trata-se de uma decisão livre fundada em razões de mérito (conveniência, oportunidade, boa administração) e, por isso, insusceptível de fiscalização contenciosa.
Este pode vr por vezes é confundido com a utilização de conceitos jurídicos indeterminados. Conceitos indeterminados são aqueles cujo conteúdo e extensão são incertos ou que não permitam comunicações claras quanto ao seu conteúdo, seja por polissemia, vaguidade, ambiguidade, porosidade ou esvaziamento, nas palavras do professor FREITAS DO AMARAL. Esta situação é denominada, como refere MARIA LUÍSA DUARTE, como discricionariedade imprópria e que se refere a todas as realidades, que não cabendo na discricionariedade pura ou volitiva, têm idêntico regime jurídico. Aqui se inserem o uso de conceitos indeterminados, a discricionariedade técnica, a liberdade probatória e a justiça administrativa.
Em Portugal, vários autores tomaram posição nesta matéria. Para SÉRVULO CORREIA, os conceitos indeterminados inserem-se na esfera da discricionariedade técnica, quando a lei incumbe a administração de proceder à interpretação da lei ou a um juízo cognitivo, de existência de factos. A verdadeira discricionariedade é uma “liberdade atribuída à Administração, de escolher condutas igualmente licitas”. O problema está na delimitação da fronteira entre a enunciação legal dos pressupostos do acto administrativo e a utilização de tais conceitos como fórmula técnica e destinada a reconhecer à Administração liberdade na escolha de alguns pressupostos. O autor defende que a atribuição de discricionariedade pode ser determinada pela interpretação dos conceitos indeterminados. GONÇALVES PEREIRA distingue interpretação de discricionariedade. Esta existe apenas quando a norma previamente confere valor jurídico a qualquer actuação do agente dentro de uma série de actuações possíveis, desde que a intenção do agente seja a prossecução do fim legal. Os conceitos indeterminados, mesmo carecidos de interpretação resultariam apenas em poderes vinculados, tal como os restantes conceitos técnicos. ESTEVES OLIVEIRA já separa com mais dificuldade os conceitos indeterminados da discricionariedade uma vez que defende que alguns conceitos indeterminados (como interesse público, necessidade, oportunidade) contêm a atribuição de um poder discricionário à Administração. Mas nos casos em que a lei ou não quis atribuir esse poder ou seja dúbia a verdade intenção do legislador, toma-se a posição contrária. o problema coloca-se quando é necessário saber que casos são esses. AFONSO QUEIRÓ começou por defender que a discricionariedade só existia quando atribuída deliberadamente pelo legislador; os conceitos indeterminados eram simplesmente produtos da impossibilidade prática ou dificuldade técnica com que o legislador frequentemente se encontrava, de enunciar, sem rigor, as circunstâncias em que a Administração podia exercer os seus poderes. Assim os órgãos teriam de proceder a uma interpretação da norma, mas estar-se-ia sempre no domínio do poder vinculado. Mas em 1976, o autor passa a defender como certos conceitos discricionários, o interesse público, a urgência, a razoabilidade, que atribuem à Administração uma faculdade de valorar livremente os comportamentos susceptiveis, que uma vez acolhidos e realizados, servirem à realização do fim protegido. Por fim, FREITAS DO AMARAL, distingue a liberdade probatória – situações em que a lei reconhece à Administração uma margem livre de apreciação das provas com o dever de encontrar uma única solução correcta, não existindo controlo jurisdicional dada a inconveniência de substituir a um juízo problemático da Administração, um outro juízo do tribunal; a discricionariedade técnica – que integra as decisões da Administração que são tomadas com base em estudos prévios de natureza técnica e segundo critérios extraídos de normas técnicas e científicas, também não existindo controlo jurisdicional pelas mesmas razões; por fim distingue a justiça administrativa que se reporta aos casos em que a Administração é chamada a proferir decisões essencialmente baseadas em critérios de justiça material (exemplo: classificações atribuídas por júris de exames). As realidades que o professor FREITAS DO AMARAL designa como discricionariedade impropria reconduzem-se ao emprego e consequente preenchimento de conceitos vagos e indeterminados pela Administração.
No que se refere à relação entre conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade, distinguem-se duas correntes de pensamento:
i)                    Monismo metodológico: assimila a valoração de conceitos indeterminados à discricionariedade pura ou volitiva. O poder discricionário assenta sempre na liberdade ou autonomia do preenchimento valorativo de conceitos vagos ou indeterminados.
Podem-se distinguir várias fases:
a)      A Administração, ao valorar um conceito jurídico de contornos imprecisos, agia como técnico do interesse público, de tal forma que um posterior controlo judicial representaria apenas um novo e não menos subjectivo juízo técnico, com flagrante violação do princípio da separação de poderes. É a teoria da dupla administração.
b)      A Administração admite que, em certos casos apreensíveis pela via interpretativa, o legislador tenha usado os conceitos indeterminados em termos vinculantes, sem intenção de reconhecer à Administração uma margem livre de apreciação.
c)       A Administração admite a impossibilidade de distinguir na norma os pressupostos de natureza vinculante e a discricionariedade. Desta premissa resulta uma concepção unitária das duas figuras. Nega a existência de poderes discricionários, insusceptíveis, por natureza, de censura judicial quanto ao mérito da decisão. MARIA LUÍSA DUARTE critica esta posição, uma vez que reduz a discricionariedade a um mero problema de interpretação e aplicação da norma.
Esta corrente já pouco (ou nenhum) apoio tem nos dias de hoje. Existem diversos obstáculos que não lhe dão a coerência necessária. Podem-se distinguir os principais:
a)      O monismo ignora a diferença entre conceitos classificatórios e conceitos indeterminados. A interpretação e aplicação dos primeiros apresenta sempre a mesma natureza objectivante, sendo indiferente o carácter administrativo ou judicial do órgão aplicador. Desta forma, os argumentos da dupla administração e da violação da separação de poderes perdem coerência.
b)      De acordo com a concepção unitária da norma, a previsão e a estatuição de uma norma possuem uma conexão estreita mas não significa que a determinação dos pressupostos da previsão seja livre e discricionária. Esta determinação pode sim, ser tendencialmente reconduzida à valoração de conceitos indeterminados e não ao exercício de poderes discricionários.
c)       Só a diferenciação conceptual e regimental entre discricionariedade e conceitos indeterminados pode assegurar, em primeiro lugar a liberdade de decisão ligada ao poder discricionário e a insusceptibilidade do seu controlo judicial e, em segundo lugar, a plena sindicabilidade dos conceitos classificatórios bem como a diferença de fundamentos e de regime.
Ainda é preciso fazer nota à relação que esta matéria tem com o princípio da proporcionalidade. Este pode ser desmontado em três vertentes: a necessidade, a adequação e o equilíbrio. Apenas uma delas – a adequação – está apta a vincular a concretização de conceitos verdadeiramente indeterminados. O exercício de poderes discricionários puros deve observar todas as três.
ii)                   Dualismo radical
- Radical: defende que a concretização de qualquer conceito indeterminado é sempre actividade vinculada porque o intérprete deve procurar a única solução juridicamente correcta. Esta tese não procede, uma vez que só considera os conceitos classificatórios.
- Mitigado: para esta corrente, a concretização dos conceitos indeterminados difere da discricionariedade por serem duas modalidades de livre apreciação e decisão administrativa distintas conceptual e regimentalmente (excluindo os conceitos classificatórios que se inserem na esfera da vinculação).
Para se proceder à distinção dos conceitos indeterminados e da discricionariedade é preciso traçar primeiro, os aspectos que os dois institutos têm em comum:
A – Fonte normativa: toda a margem livre de decisão administrativa resulta de uma norma jurídica. É a maior ou menor abertura de uma norma do “bloco de legalidade” que confere à Administração uma margem de autonomia.
B – Juízo de prognose: SÉRVULO CORREIA define-o como um juízo de estimativa sobre futura actuação de uma pessoa (baseada na valoração das suas qualidades), sobre a futura utilização de uma coisa ou sobre o futuro desenvolvimento de um processo social. Este juízo contém um ineliminável grau de subjectivismo mas que pode ser objectivado na medida do possível. Esta transformação objectiva é um imperativo de Boa Administração. Neste esforço assumem papel central, as chamadas regras de experiência, às quais a Administração tem de recorrer quando faltarem melhores indícios. Ao usar-se a experiência adquirida no passado para avaliar a evolução futura, está-se a reduzir a margem do subjectivismo inerente aos juízos da prognose.
Em contrapartida, a distinção entre as duas figuras pode ser estabelecida a partir de duas teorias conexas.
A – Teoria do completamento da previsão (aberta da norma): quer nas hipóteses de discricionariedade quer nas de valoração de conceitos verdadeiramente indeterminados, o que está em causa é uma operação que visa completar, concretizar ou precisar o disposto na previsão da norma, na qual se subsume a situação concreta. A diferença encontra-se apenas nos critérios e em regras diferentes para os dois casos. Esta teoria é usada pelas duas correntes acima referidas.
i)                    Para o monismo metodológico, é usada para justificar a unidade e indiferenciação das duas figuras, uma vez que a necessidade de completar a previsão surge em ambas. Como refere VIEIRA DE ANDRADE, a lei é obrigada a refugiar-se em conceitos imprecisos ao programar a intervenção administrativa, uma vez que o alargamento das funções sociais do Estado faz surgir um conjunto vasto de diferenciados de situações que tornam impossível ao legislador definir, com clareza e abstracção, as condições de verificação do interesse público. Assim, defendendo a impossibilidade de distinguir nitidamente a previsão e a estatuição de uma norma, falam em discricionariedade em sentido amplo, que abrange os efeitos, o processo e as condições de decisão (incluindo a identificação do interesse público), quando a lei não defina de modo preciso as circunstancias que o revelam. A discricionariedade em sentido amplo divide-se então em discricionariedade pura ou volitiva – localizada sobretudo na estatuição da norma – e discricionariedade cognitiva – situada na previsão da norma e decorrente da utilização pela lei de conceitos vagos e indeterminados.
ii)                   Para o dualismo metodológico, o completamento da previsão faz-se de acordo com técnicas diferentes. No caso de um poder discricionário a lei define que se se verificarem os pressupostos P1 e P2, o órgão administrativo pode atribuir um subsídio a uma empresa particular. BERNARDO AYALA, define a vontade do órgão administrativo como um terceiro pressuposto. Fala-se então de um alargamento da previsão em termos conjuntivos. No caso da apreciação de conceitos vagos e indeterminados, a situação é outra: se se verificarem os pressupostos P1, P2 e (P3 ou P4), deve ser atribuído um subsidio. Já não existe discricionariedade mas há ainda uma certa margem de autonomia. Aqui a alargamento é disjuntivo, conjugando-se a permissão de ampliação do campo de aplicação da norma com a averiguação do seu conteúdo semântico.
B – Teoria da ponderação valorativa de interesses concorrentes: esta ponderação tem como escopo privilegiar algum ou alguns interesses considerados mais consentâneos com o interesse público específico salvaguardado pelo legislador através da concessão de uma margem livre de direito. A margem livre de decisão dada pela abertura da previsão da norma pressupõe um juízo de prognose mas não abrange sempre a ponderação de interesses. É aqui que as duas figuras se distinguem: enquanto o exercício de poderes discricionários passa pela decisão de um conflito entre os interesses em concorrência no caso concreto (podendo a Administração escolher o melhor entre os legalmente admissíveis, procedendo a um raciocínio comparativo), na valoração de conceitos verdadeiramente indeterminados existe uma decisão isolada (não comparativa) de prognose sobre um elemento da previsão normativa, limitando-se a um exame da adequação de um certo meio numa prespectiva de futuro. O preenchimento de um conceito indeterminado é uma operação de valoração feita isoladamente, sem comparações. Tratando-se de um problema de interpretação criativa, reconduzindo ou não a situação concreta à norma jurídica.
Ainda será importante fazer referência à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no que se refere a este problema e que está longe de um entendimento geral. Por vezes a confusão é tão grave que se chegam a conclusões contraditórias:
Caso: a lei dispõe que as autoridades portuguesas só devem conceder asilo político a estrageiros e apátridas se estes estiverem gravemente ameaçados de perseguição ou se recearem, com razão, ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, opiniões politicas, etc.
i)                    Acordão STA de 21/1/86: a apreciação da existência ou não de um “receio razoável” de ser perseguido consubstancia o exercício de poderes discricionários.
ii)                   Acordão STA de 18/2/88: decide-se que a Administração age vinculadamente no âmbito da interpretação de conceitos indeterminados, embora nesses casos não possa haver fiscalização contenciosa. As expressões “gravidade da ameaça” ou “razoabilidade do receio” não atribuem à Administração a liberdade de escolha de soluções possíveis, porquanto conferem aos interessados um direito de asilo garantido constitucionalmente desde que os pressupostos descritos na lei se verifiquem no caso concreto.

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