domingo, 16 de dezembro de 2012

Os direitos dos particulares face à Administração - o caso das expropriações


Um dos grandes problemas do Estado é o facto de conciliar a prossecução do interesse público com os direitos dos particulares. Cada modelo político tem diferentes formas de conciliar estes dois factores.
O desenvolvimento social faz surgir a necessidade de ter uma Administração mais presente e mais extensa o que por vezes implica que sejam postos em causa direitos e interesses legalmente protegidos de particulares. Assim a Administração é legitimada por vários princípios, sendo o primeiro e o basilar a subordinação à lei. Este princípio implica que se restrinja a área de acção da Administração uma vez que, se fosse total a liberdade desta, existiriam infinitas formas de se chegar ao mesmo resultado, mesmo para garantir o interesse público.
A – conceito de expropriação
Tentarei mostrar a conciliação e funcionamento de vários princípios que limitam a Administração através do exemplo da expropriação por utilidade pública. Não pretendo aprofundar este instituto mas apenas usá-lo como cenário de actuação dos tais princípios.
A aquisição por utilidade pública deve ser entendida como um procedimento de aquisição de bens, com vista à realização de um interesse público. Tradicionalmente, esta figura é composta por dois momentos, sendo o primeiro o procedimento administrativo e o segundo o processo jurisdicional. É de salientar que o procedimento administrativo é essencial à caracterização da expropriação, podendo só não ter lugar em situações excepcionais, como sucede nas expropriações urgentes. O processo jurisdicional é de ocorrência eventual, muito embora, na prática, seja mais comum do que seria desejável, em virtude das dificuldades na obtenção de acordo quanto ao valor da indemnização devida.
Este instituto está estabelecido no artigo 62º nº2 da Constituição da República Portuguesa, que preceitua que “a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”. Representa, portanto, um limite à garantia do direito de propriedade.
O momento inicial da expropriação baseia-se na declaração de utilidade pública e é um  acto administrativo, mesmo que consista em diploma com forma de lei. A sua incidência será sempre individual e tem como efeito a constituição da relação jurídica de expropriação. O seu conteúdo baseia-se na a) sujeitação à expropriação, que passou a atingir com carácter real o prédio expropriado, como limite do direito real do titular e b) na obrigação de indemnizar que recai sempre sobre o expropriante.
A expropriação tem sempre de ter uma causa de utilidade pública. Na lei nº 2030, esta causa tinha de ser prevista por lei, sendo que assim todas as causas seriam típicas. Com o novo Código das Expropriações, o art. 1º vem compreender a causa de utilidade pública nas atribuições da entidade expropriante, dando mais discricionariedade à Administração. Porém, continuam a existir causas constantes nas leis que têm de ser fixadas em casos especiais.
B – figuras afins
A expropriação não pode ser confundida com outras figuras correspondentes a poderes do Estado acerca da apropriação de propriedade e elas são:
i)                    Confisco: toda a apropriação pública de bens sem contrapartida em indemnização adequada. Instituto suprimido em 1982, continuando a existir porém a possibilidade de confiscos, mas fundados em razoes particulares
ii)                   Nacionalização: acto político de apropriação de bens por via legislativa que tem efeitos automáticos e não admite revisão nem recurso
iii)                 Estatização: se o Estado se apropriar de certos bens para efeitos de reforma social e os guarda para si
iv)                 Colectivização: se os atribui de algum modo à comunidade
v)                  Socialização: pode estar ligada à previsão de propriedade social, atendendo-se mais à gestão que à titularidade. Lei contrapõe-na à nacionalização. É de difícil distinção da colectivização.
C – Direito da Propriedade Privada
A concepção do direito de propriedade como um direito absoluto está há muito ultrapassada, considerando-se que está desde logo subordinado a um limite estrutural inerente, que a doutrina designa como função social.
A nossa Constituição consagra o direito de propriedade privada no seu artigo 62º donde se pode retirar as seguintes conclusões:
i)                    O direito de propriedade é consagrado, no plano constitucional, como direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias do cidadão.
ii)                   Não se trata de um direito absoluto, uma vez que é garantido nos termos na Constituição.
iii)                 Na delimitação do seu conteúdo e limites, o legislador e a Administração estão vinculados por determinados princípios e ditames como a impossibilidade de diminuir a extensão e o alcance do contudo essencial do direito de propriedade (18º nº3 CRP); o respeito pelo princípio da proporcionalidade (18/2 CRP) e da igualdade (13/1 CRP). Para alem disso a Administração não pode estabelecer restrições ou limites que não tenham sido impostos pela Constituição ou por lei, tendo de agir sempre com respeito pelos princípios gerais de direito, nomeadamente da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (266/2 CRP)
D – declaração de utilidade pública
A declaração de utilidade pública não se confunde com a expropriação. Esta só pode ser vista como o acto final ou como todo o processo. Da declaração resulta que os bens fiquem onerados em termos reais, sendo o seu titular impotente para evitar a actuação potestativa dos órgãos públicos.
Terá o efeito real reversibilidade?
A expropriação é sempre subordinada à lei. A sua fonte é um acto administrativo e por isso o seu estatuto depende da impugnibilidade deste. Se o acto for anulado, os bens recuperam a sua liberdade.
A declaração de utilidade pública pode caducar quando a relação expropriatória sofre um desenvolvimento anómalo, representando um prejuízo para o particular, cujos bens ficam onerados sem que seja indemnizado. O art. 13º, no seu nº 3 estabelece que “a declaração de utilidade pública caduca se não for promovida a constituição da arbitragem no prazo de um ano ou se o processo de expropriação não for remetido ao tribunal competente no prazo de 18 meses, em ambos os casos a contar da data da publicação da declaração de utilidade pública.”
Não obstante declaração de utilidade pública, os prédios continuam na propriedade dos seus donos, enquanto não estiver pago e depositado o preço da expropriação, ou definido o regime de pagamento em prestações ou em espécie. Com isto pretende a lei ordinária satisfazer as exigências constitucionais, em garantia dos particulares.
E – garantias dos particulares
No caso específico da expropriação os particulares são protegidos de várias formas. Em primeiro lugar, é lhes concedido uma garantia geral, a da impugnação da declaração de utilidade pública com base em ilegalidade. Depois, são beneficiados por garantias específicas, esquematizadas de seguida:
i)                    Caducidade da declaração de utilidade pública que pretende evitar que o expropriado veja prolongar-se, por muito tempo, uma situação indefinida. A declaração de caducidade pode ser requerida por qualquer interessado no processo expropriativo e aproveita a todos. Não pode ser invocada pelas entidades procedimentalmente expropriantes e benificiárias da expropriação. No entanto é possível, após a caducidade da primeira, a criação de uma nova declaração de utilidade pública (não sendo possível, aproveitar actos anteriores, devendo a indemnização ser determinada à data da nova declaração) ou a renovação da anterior.
ii)                   Indemnização: A justa indemnização visa ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal.
iii)                 Direito de reversão: garantia constitucional do direito de propriedade. Significa que a declaração de utilidade pública é emitida sob a condição resolutiva de o bem ser afecto àquele fim. O artigo 5º/1 do Código das Expropriações, cria dois pressupostos para a sua aplicação: a) se no prazo de dois anos, após a data de adjudicação, os bens expropriados não forem aplicados ao fim que determinou a expropriação, e b) se, entretanto, tiverem cessado as finalidades da expropriação. O direito de reversão também pode cessar quando a) tenham decorrido 20 anos sobre a data da adjudicação, b) quando seja dado aos bens expropriados outro destino, mediante nova declaração de utilidade pública, c) quando haja renúncia do expropriado ou d) quando a declaração de utilidade pública seja renovada com fundamento em prejuízo para o interesse público, dentro do prazo de um ano a contar da verificação dos pressupostos do direito de reversão.
Tem também de ser tido em consideração o facto de o processo expropriativo só ocorrer subsidiariamente, uma vez que a Administração se encontra vinculada pelo art. 11 do C.E. que preceitua, no seu nº1 o seguinte: “A entidade interessada, antes de requerer a declaração de utilidade pública, deve diligenciar no sentido de adquirir os bens por via de direito privado, salvo nos casos previstos no artigo 15.º, e nas situações em que, jurídica ou materialmente, não é possível a aquisição por essa via.” O artigo 15º estipula os casos de urgência em que a tentativa de aquisição do bem por via privada é afastada.
F – Direito de acesso aos tribunais
O acto expropriativo, incidindo na esfera dos particulares tem de, necessariamente, ser acompanhado com a possibilidade de acesso aos tribunais. Este direito é assegurado pela Constituição, no artigo 20º. A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força do caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar. Daqui decorre o principio da reserva da função jurisdicional dos tribunais, o qual impõe que a resolução de conflitos de interesses com vista à realização do direito e da justiça seja exclusivamente cometido aso tribunais, órgãos independentes e imparciais com competência para administrar a justiça em nome do povo.
Este acesso aos tribunais é muito importante quando se trata de fixar as indemnizações devidas ao expropriado. E mesmo o privilégio da execução prévia de que goza a Administração, de que resulta a capacidade de fixação unilateral do montante da indemnização pelo expropriante é compatível com o direito de acesso aos tribunais, pois sempre se poderia interpor recurso daquele acto e assim não se contrariaria a norma constitucional em virtude da qual a decisão final do caso incumbe aos tribunais.
A composição do conflito de interesses que surge no momento de fixação da indemnização tem, necessariamente, de ser atribuída a um órgão integrado na função jurisdicional, ou seja, um órgão imparcial, cujo fim específico seja a realização do direito ou da justiça. E, com toda a evidência, não está nessas condições a Administração, como parte interessada na resolução de tal conflito.
H – Síntese
 Tendo em conta a sua função social, o legislador constitucional previu a possibilidade de se restringir ou mesmo extinguir o direito de propriedade, com o fim de prover à satisfação de necessidades colectivas. Contudo, a possibilidade conferida a administração de recorrer a institutos de expropriação e da requisição por utilidade pública encontra se sujeita à observância de certos pressupostos, sob pena de ilegitimidade. O art.º 2 do CE preceitua que todos os intervenientes no procedimentos e processo expropriativo se encontram vinculados à observância de certos princípios, que visam garantir a harmonização do prosseguimento do interesse publico com a protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos expropriados e demais interessados, observando nomeadamente, os princípios da legalidade, justiça, igualdade, proporcionalidade, imparcialidade e boa fé. O princípio da audiência dos interessados, apesar de não se encontrar expressamente consagrado no C.E., aplica-se ao procedimento expropriativo por força do 100 CPA e do 268/1 CRP.
Assim, e para sistematizar e salientar a relação da figura da expropriação com os vários princípios que vigoram no ramo do Direito Administrativo, prossegue-se à individualização dos mais marcantes nesta figura:
Princípio da legalidade: mais que um pressuposto de legitimidade de expropriação é um elemento estrutural do conceito de expropriação por utilidade pública.
Princípio da igualdade: 13, 66/2 CRP. A igualdade será sempre relativa, consistindo na semelhança entre situações, a nível dos elementos essenciais, segundo o critério de valores vigente numa determinada sociedade. Para a administração, será injustificado o tratamento desigual que não esteja fundado em diferenças previstas nas normas legais que regem a factualidade em causa. No caso das expropriações, ao particular atingido por um acto de expropriação não pode ser imposto, sem fundamento, um sacrifício patrimonial não exigido aos outros particulares não expropriados. Se não for restaurada a lesão patrimonial sofrida pelo expropriado, vai ser imposta uma onerosidade forçada e acrescida, por inexistência de justificação material para a diferença entre o valor do mercado dos bens expropriados, e o valor atribuído a título de indemnização.
Princípio da proporcionalidade: de acordo com 5/2 do CPA, as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar. A expropriação deve apresentar-se como necessária à realização do fim de utilidade pública. Só se deve recorrer ao instituto da expropriação quando não for possível atingir o fim publico com outras soluções jurídicas ou económicas, nomeadamente os meios contratuais de direito privado (excepção: expropriações urgentes). Os bens expropriados têm de ser necessários à realização do fim da utilidade pública. O 5º C.E. preceitua que os expropriados têm o direito de reaver a propriedade do bem expropriado, no caso de cessarem as finalidades da expropriação. Os danos causados aos particulares devem ser os estritamente necessários à realização do fim de utilidade pública, ou seja, a lesão produzida deve ser a menor possível. Tem de haver um equilíbrio entre o dano causado aos interesses dos particulares e o benefício colectivo obtido através da expropriação. Isto significa que por vezes, uma das vertentes tenha de ser sacrificada como, por exemplo, no caso de o desvio do traçado projectado de uma estrada, com o intuito de evitar algumas expropriações, aumente consideravelmente o custo da obra.
Princípio da justiça: a determinação de indemnização devida por expropriação deve ser equitativa não só para o expropriado mas também para o interesse público, questão aflorada no art.º. 23 C.E. em que não devem ser tomados em consideração certos factores, circunstancia ou situações que possam causar um aumento injustificado do valor indemnizatório.
Princípio da imparcialidade: a administração, na formação da sua vontade, deve ponderar, com distanciamento em relação aos sujeitos com que se relaciona, todos os interesses juridicamente relevantes presentes numa situação concreta. Será um subprincípio do da justiça uma vez que se a Administração não for imparcial ao tomar uma decisão, não será possível que a sua actuação seja justa.
Principio da boa fé: o art.º 6/A do CPA preceitua que tanto a Administração como os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé. A violação deste princípio verifica-se por exemplo na apresentação de propostas de aquisição com montantes irrisórios, completamente afastados do valor real do mercado dos bens em causa, ou a intransigência na aceitação de quaisquer contrapropostas dos interessados, com vista a sabotar a tentativa de aquisição por via do direito privado, por forma a legitimar mais rápida declaração de utilidade pública de expropriação e o início do processo expropriativo.
Princípio da audiência dos interessados: os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento, antes de a administração tomar a decisão final e deve ser prestada a estes toda a informação sobre o sentido provável da decisão.

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