Um dos grandes problemas do
Estado é o facto de conciliar a prossecução do interesse público com os
direitos dos particulares. Cada modelo político tem diferentes formas de
conciliar estes dois factores.
O desenvolvimento social faz
surgir a necessidade de ter uma Administração mais presente e mais extensa o
que por vezes implica que sejam postos em causa direitos e interesses legalmente
protegidos de particulares. Assim a Administração é legitimada por vários
princípios, sendo o primeiro e o basilar a subordinação à lei. Este princípio
implica que se restrinja a área de acção da Administração uma vez que, se fosse
total a liberdade desta, existiriam infinitas formas de se chegar ao mesmo
resultado, mesmo para garantir o interesse público.
A – conceito de expropriação
Tentarei mostrar a conciliação e
funcionamento de vários princípios que limitam a Administração através do
exemplo da expropriação por utilidade pública. Não pretendo aprofundar este
instituto mas apenas usá-lo como cenário de actuação dos tais princípios.
A aquisição por utilidade pública deve ser entendida como um
procedimento de aquisição de bens, com vista à realização de um interesse
público. Tradicionalmente, esta figura é composta por dois momentos, sendo o
primeiro o procedimento administrativo e o segundo o processo jurisdicional. É
de salientar que o procedimento administrativo é essencial à caracterização da
expropriação, podendo só não ter lugar em situações excepcionais, como sucede
nas expropriações urgentes. O processo jurisdicional é de ocorrência eventual,
muito embora, na prática, seja mais comum do que seria desejável, em virtude
das dificuldades na obtenção de acordo quanto ao valor da indemnização devida.
Este instituto está estabelecido
no artigo 62º nº2 da Constituição da República Portuguesa, que preceitua que “a
requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com
base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”. Representa,
portanto, um limite à garantia do direito de propriedade.
O momento inicial da expropriação baseia-se na declaração de
utilidade pública e é um acto
administrativo, mesmo que consista em diploma com forma de lei. A sua
incidência será sempre individual e tem como efeito a constituição da relação
jurídica de expropriação. O seu conteúdo baseia-se na a) sujeitação à
expropriação, que passou a atingir com carácter real o prédio expropriado, como
limite do direito real do titular e b) na obrigação de indemnizar que recai sempre
sobre o expropriante.
A expropriação tem sempre de ter uma causa de utilidade
pública. Na lei nº 2030, esta causa tinha de ser prevista por lei, sendo que
assim todas as causas seriam típicas. Com o novo Código das Expropriações, o
art. 1º vem compreender a causa de utilidade pública nas atribuições da
entidade expropriante, dando mais discricionariedade à Administração. Porém,
continuam a existir causas constantes nas leis que têm de ser fixadas em casos
especiais.
B – figuras afins
A expropriação não pode ser confundida com outras figuras
correspondentes a poderes do Estado acerca da apropriação de propriedade e elas
são:
i)
Confisco: toda a apropriação pública de bens sem
contrapartida em indemnização adequada. Instituto suprimido em 1982, continuando
a existir porém a possibilidade de confiscos, mas fundados em razoes
particulares
ii)
Nacionalização: acto político de apropriação de
bens por via legislativa que tem efeitos automáticos e não admite revisão nem
recurso
iii)
Estatização: se o Estado se apropriar de certos
bens para efeitos de reforma social e os guarda para si
iv)
Colectivização: se os atribui de algum modo à
comunidade
v)
Socialização: pode estar ligada à previsão de propriedade
social, atendendo-se mais à gestão que à titularidade. Lei contrapõe-na à nacionalização.
É de difícil distinção da colectivização.
C – Direito da Propriedade Privada
A concepção do direito de
propriedade como um direito absoluto está há muito ultrapassada,
considerando-se que está desde logo subordinado a um limite estrutural inerente,
que a doutrina designa como função social.
A nossa Constituição consagra o
direito de propriedade privada no seu artigo 62º donde se pode retirar as
seguintes conclusões:
i)
O direito de propriedade é consagrado, no plano
constitucional, como direito fundamental de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias do cidadão.
ii)
Não se trata de um direito absoluto, uma vez que
é garantido nos termos na Constituição.
iii)
Na delimitação do seu conteúdo e limites, o
legislador e a Administração estão vinculados por determinados princípios e
ditames como a impossibilidade de diminuir a extensão e o alcance do contudo
essencial do direito de propriedade (18º nº3 CRP); o respeito pelo princípio da
proporcionalidade (18/2 CRP) e da igualdade (13/1 CRP). Para alem disso a
Administração não pode estabelecer restrições ou limites que não tenham sido
impostos pela Constituição ou por lei, tendo de agir sempre com respeito pelos
princípios gerais de direito, nomeadamente da proporcionalidade, da justiça, da
imparcialidade e da boa fé (266/2 CRP)
D – declaração de
utilidade pública
A declaração de utilidade pública não se confunde com a
expropriação. Esta só pode ser vista como o acto final ou como todo o processo.
Da declaração resulta que os bens fiquem onerados em termos reais, sendo o seu
titular impotente para evitar a actuação potestativa dos órgãos públicos.
Terá o efeito real
reversibilidade?
A expropriação é sempre
subordinada à lei. A sua fonte é um acto administrativo e por isso o seu
estatuto depende da impugnibilidade deste. Se o acto for anulado, os bens
recuperam a sua liberdade.
A declaração de utilidade pública
pode caducar quando a relação expropriatória sofre um desenvolvimento anómalo,
representando um prejuízo para o particular, cujos bens ficam onerados sem que
seja indemnizado. O art. 13º, no seu nº 3 estabelece que “a declaração de utilidade pública caduca se não for
promovida a constituição da arbitragem no prazo de um ano ou se o processo de
expropriação não for remetido ao tribunal competente no prazo de 18 meses, em
ambos os casos a contar da data da publicação da declaração de utilidade
pública.”
Não
obstante declaração de utilidade pública, os prédios continuam na propriedade
dos seus donos, enquanto não estiver pago e depositado o preço da expropriação,
ou definido o regime de pagamento em prestações ou em espécie. Com isto
pretende a lei ordinária satisfazer as exigências constitucionais, em garantia
dos particulares.
E – garantias dos particulares
No caso
específico da expropriação os particulares são protegidos de várias formas. Em
primeiro lugar, é lhes concedido uma garantia geral, a da impugnação da
declaração de utilidade pública com base em ilegalidade. Depois, são
beneficiados por garantias específicas, esquematizadas de seguida:
i)
Caducidade da
declaração de utilidade pública que pretende evitar que o expropriado veja
prolongar-se, por muito tempo, uma situação indefinida. A declaração de caducidade
pode ser requerida por qualquer interessado no processo expropriativo e
aproveita a todos. Não pode ser invocada pelas entidades procedimentalmente
expropriantes e benificiárias da expropriação. No entanto é possível, após a
caducidade da primeira, a criação de uma nova declaração de utilidade pública
(não sendo possível, aproveitar actos anteriores, devendo a indemnização ser
determinada à data da nova declaração) ou a renovação da anterior.
ii)
Indemnização: A
justa indemnização visa ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação,
correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino
efectivo ou possível numa utilização económica normal.
iii)
Direito de reversão: garantia constitucional do
direito de propriedade. Significa que a declaração de utilidade pública é
emitida sob a condição resolutiva de o bem ser afecto àquele fim. O artigo 5º/1
do Código das Expropriações, cria dois pressupostos para a sua aplicação: a) se
no prazo de dois anos, após a data de adjudicação, os bens expropriados não
forem aplicados ao fim que determinou a expropriação, e b) se, entretanto,
tiverem cessado as finalidades da expropriação. O direito de reversão também
pode cessar quando a) tenham decorrido 20 anos sobre a data da adjudicação, b) quando
seja dado aos bens expropriados outro destino, mediante nova declaração de
utilidade pública, c) quando haja renúncia do expropriado ou d) quando a
declaração de utilidade pública seja renovada com fundamento em prejuízo para o
interesse público, dentro do prazo de um ano a contar da verificação dos
pressupostos do direito de reversão.
Tem também de ser tido em consideração
o facto de o processo expropriativo só ocorrer subsidiariamente, uma vez que a
Administração se encontra vinculada pelo art. 11 do C.E. que preceitua, no seu
nº1 o seguinte: “A entidade interessada, antes de
requerer a declaração de utilidade pública, deve diligenciar no sentido de
adquirir os bens por via de direito privado, salvo nos casos previstos no
artigo 15.º, e nas situações em que, jurídica ou materialmente, não é possível
a aquisição por essa via.” O artigo 15º estipula os casos de urgência em
que a tentativa de aquisição do bem por via privada é afastada.
F – Direito de acesso aos tribunais
O acto expropriativo, incidindo
na esfera dos particulares tem de, necessariamente, ser acompanhado com a
possibilidade de acesso aos tribunais. Este direito é assegurado pela Constituição,
no artigo 20º. A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de
obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força do caso
julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade
de a fazer executar. Daqui decorre o principio da reserva da função
jurisdicional dos tribunais, o qual impõe que a resolução de conflitos de
interesses com vista à realização do direito e da justiça seja exclusivamente
cometido aso tribunais, órgãos independentes e imparciais com competência para
administrar a justiça em nome do povo.
Este acesso aos tribunais é muito
importante quando se trata de fixar as indemnizações devidas ao expropriado. E
mesmo o privilégio da execução prévia de que goza a Administração, de que
resulta a capacidade de fixação unilateral do montante da indemnização pelo
expropriante é compatível com o direito de acesso aos tribunais, pois sempre se
poderia interpor recurso daquele acto e assim não se contrariaria a norma
constitucional em virtude da qual a decisão final do caso incumbe aos
tribunais.
A composição do conflito de
interesses que surge no momento de fixação da indemnização tem,
necessariamente, de ser atribuída a um órgão integrado na função jurisdicional,
ou seja, um órgão imparcial, cujo fim específico seja a realização do direito
ou da justiça. E, com toda a evidência, não está nessas condições a
Administração, como parte interessada na resolução de tal conflito.
H – Síntese
Tendo em conta a sua
função social, o legislador constitucional previu a possibilidade de se
restringir ou mesmo extinguir o direito de propriedade, com o fim de prover à
satisfação de necessidades colectivas. Contudo, a possibilidade conferida a
administração de recorrer a institutos de expropriação e da requisição por
utilidade pública encontra se sujeita à observância de certos pressupostos, sob
pena de ilegitimidade. O art.º 2 do CE preceitua que todos os intervenientes no
procedimentos e processo expropriativo se encontram vinculados à observância de
certos princípios, que visam garantir a harmonização do prosseguimento do
interesse publico com a protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos expropriados e demais interessados, observando nomeadamente, os princípios
da legalidade, justiça, igualdade, proporcionalidade, imparcialidade e boa fé.
O princípio da audiência dos interessados, apesar de não se encontrar
expressamente consagrado no C.E., aplica-se ao procedimento expropriativo por
força do 100 CPA e do 268/1 CRP.
Assim, e para sistematizar e salientar a relação da figura da
expropriação com os vários princípios que vigoram no ramo do Direito
Administrativo, prossegue-se à individualização dos mais marcantes nesta
figura:
Princípio da legalidade: mais que
um pressuposto de legitimidade de expropriação é um elemento estrutural do
conceito de expropriação por utilidade pública.
Princípio da igualdade: 13, 66/2
CRP. A igualdade será sempre relativa, consistindo na semelhança entre
situações, a nível dos elementos essenciais, segundo o critério de valores
vigente numa determinada sociedade. Para a administração, será injustificado o
tratamento desigual que não esteja fundado em diferenças previstas nas normas
legais que regem a factualidade em causa. No caso das expropriações, ao
particular atingido por um acto de expropriação não pode ser imposto, sem
fundamento, um sacrifício patrimonial não exigido aos outros particulares não expropriados.
Se não for restaurada a lesão patrimonial sofrida pelo expropriado, vai ser
imposta uma onerosidade forçada e acrescida, por inexistência de justificação
material para a diferença entre o valor do mercado dos bens expropriados, e o
valor atribuído a título de indemnização.
Princípio da proporcionalidade:
de acordo com 5/2 do CPA, as decisões da Administração que colidam com direitos
subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem
afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a
realizar. A expropriação deve apresentar-se como necessária à realização do fim
de utilidade pública. Só se deve recorrer ao instituto da expropriação quando
não for possível atingir o fim publico com outras soluções jurídicas ou
económicas, nomeadamente os meios contratuais de direito privado (excepção:
expropriações urgentes). Os bens expropriados têm de ser necessários à
realização do fim da utilidade pública. O 5º C.E. preceitua que os expropriados
têm o direito de reaver a propriedade do bem expropriado, no caso de cessarem
as finalidades da expropriação. Os danos causados aos particulares devem ser os
estritamente necessários à realização do fim de utilidade pública, ou seja, a
lesão produzida deve ser a menor possível. Tem de haver um equilíbrio entre o
dano causado aos interesses dos particulares e o benefício colectivo obtido
através da expropriação. Isto significa que por vezes, uma das vertentes tenha
de ser sacrificada como, por exemplo, no caso de o desvio do traçado projectado
de uma estrada, com o intuito de evitar algumas expropriações, aumente
consideravelmente o custo da obra.
Princípio da justiça: a
determinação de indemnização devida por expropriação deve ser equitativa não só
para o expropriado mas também para o interesse público, questão aflorada no art.º.
23 C.E. em que não devem ser tomados em consideração certos factores,
circunstancia ou situações que possam causar um aumento injustificado do valor
indemnizatório.
Princípio da imparcialidade: a administração,
na formação da sua vontade, deve ponderar, com distanciamento em relação aos
sujeitos com que se relaciona, todos os interesses juridicamente relevantes
presentes numa situação concreta. Será um subprincípio do da justiça uma vez
que se a Administração não for imparcial ao tomar uma decisão, não será possível
que a sua actuação seja justa.
Principio da boa fé: o art.º 6/A
do CPA preceitua que tanto a Administração como os particulares devem agir e
relacionar-se segundo as regras da boa fé. A violação deste princípio
verifica-se por exemplo na apresentação de propostas de aquisição com montantes
irrisórios, completamente afastados do valor real do mercado dos bens em causa,
ou a intransigência na aceitação de quaisquer contrapropostas dos interessados,
com vista a sabotar a tentativa de aquisição por via do direito privado, por
forma a legitimar mais rápida declaração de utilidade pública de expropriação e
o início do processo expropriativo.
Princípio da audiência dos interessados: os interessados
têm o direito de ser ouvidos no procedimento, antes de a administração tomar a
decisão final e deve ser prestada a estes toda a informação sobre o sentido
provável da decisão.
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