domingo, 2 de dezembro de 2012

Devolução de Poderes - Uma Administração Pública mais eficiente


Hoje, proponho-me a escrever acerca da prossecução dos interesses públicos e das pessoas colectivas que se encontram legitimados a prossegui-los. É do conhecimento generalizado que os interesses de tal tipo se encontram, na sua maioria, a cargo do Estado ou de outras pessoas colectivas de fins múltiplos, como é o caso das regiões autónomas e das autarquias locais. Porém, em certas circunstâncias, a prossecução dos interesses públicos pode, efectivamente, ser colocada a cargo de uma pessoa colectiva de fins singulares, especialmente responsabilizada por assegurar a sua prossecução, como são os institutos públicos e as empresas públicas: é aqui que releva uma importante questão, no âmbito do Direito Administrativo, que implica ser atentada pormenorizadamente. Com efeito, cabe perguntar o que seria se o Estado tivesse de prosseguir, por si próprio, todos os interesses públicos que possam ser pensados em termos nacionais?
Parece-me correcto que este seja o ponto de partida da minha problematização. Não serve isto para especular relativamente ao que poderia possivelmente acontecer, mas sim para que seja compreendida a importância que tem a transmissão dos poderes inseridos no conjunto das atribuições que, previsivelmente, corresponderiam ao Estado. Já não nos encontramos, por isso, no plano de uma integração de poderes, isto é «de um sistema em que todos os interesses públicos a prosseguir pelo Estado, ou pelas pessoas colectivas de população e território, são postos a cargo das próprias pessoas colectivas a que pertencem». De facto, trata-se, ao invés, de uma devolução de poderes, que se trata de «um sistema em que alguns interesses públicos do Estado, ou de pessoas colectivas de população e território, são postos a cargo de pessoas colectivas de fins singulares»[1].
Esta transmissão de poderes, de um órgão que estaria legalmente autorizado a prosseguir um certo interesse público, para um outro ao qual se concede tal possibilidade de o prosseguir, é um mecanismo da maior importância, como já tive a oportunidade de frisar, para a comodidade e eficiência no exercício da Administração Pública. Ao se descongestionar a sua gestão administrativa, tome-se agora o exemplo do Estado, este achar-se-ia a actuar de maneira inquestionavelmente mais eficaz, alheio à burocratização que se poderia verificar caso concentrasse em si todos os interesses públicos que consigo estivessem conexos, num quadro de normalidade. Se assumisse estes interesses, como que exclusivamente, todas as decisões administrativas passariam pelas suas direcções-gerais, tornando-se a sua gestão mais dificultada e demorada, o que poderia, em dúvida, prejudicar a função à qual se haviam comprometido a cumprir. Ainda assim, esta transmissão de poderes tem alguns inconvenientes que se lhe podem apontar: conta-se pois, a esse propósito, a falta de controlo que um conjunto de poderes excessivamente disperso poderá implicar. Porém, mesmo que a transmissão de poderes, de uma pessoa colectiva para uma outra, se faça acompanhar tanto de vantagens como de desvantagens, a tendência actual é a de que o seu sistema seja efectivamente positivado, desde que se atendam a certos limites razoáveis, como é o caso da redução do número dito excessivo de institutos e empresas públicas que por via deste sistema acabam por ser criados.
Acho então adequado, desenvolver um pouco aquilo em que consiste este sistema da devolução de poderes. Os poderes que se transmitem da titularidade de uma pessoa colectiva para outra, são exercidos em nome próprio pela pessoa colectiva que foi especialmente criada para tanto. No entanto, acautele-se que estes mesmos poderes são exercidos no interesse da pessoa colectiva que os transmitiu e sob a sua respectiva orientação. A nossa lei permite-se a designar de dependentes, as pessoas colectivas que, como os institutos e as empresas públicas, se encontram submetidas em termos de gestão a uma outra pessoa colectiva. Este tipo de organismos pode dispor, e normalmente dispõe, de autonomia administrativa e até de autonomia financeira, mas nem por isso se encontra possibilitado de exercer os poderes que lhe haviam sido transmitidos, em auto-administração. Esta existe nas autarquias locais que se têm por organismos independentes. Sendo mais conciso, toda a autarquia local tem o direito de celebrar, discutir e aprovar livremente, sem qualquer interferência do Estado, o seu plano de actividades para cada ano, assim como o respectivo orçamento, enquanto que, no caso dos institutos públicos e das empresas públicas, eles preparam e executam o plano de actividades e o orçamento para o ano seguinte, se bem que na dependência de aprovação do Governo: pode-se, por conseguinte, estabelecer uma distinção entre as pessoas colectivas que se abordaram, mais propriamente, entre as autarquias locais, que são independentes e exercem administração autónoma – definindo o seu próprio rumo e as grandes orientações da sua actividade – e os institutos públicos e empresas públicas, que são dependentes e exercem administração indirecta – não podem definir o seu rumo nem as grandes orientações da sua actividade.
Todo e qualquer dos organismos criado através da transmissão de tais poderes encontra-se inevitavelmente sujeito à questão da tutela administrativa e da superintendência. Podem-se achar sujeitas a ambas as situações, sem prejuízo de que uma invalide a outra. Por partes, pois então. A tutela administrativa consiste «no conjunto de poderes de intervenção de uma pessoa colectiva pública na gestão de outra pessoa colectiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da sua actuação»[2]. O entendimento do prof. João Caupers, relativamente a esta temática, não se revela muito distante daquele que é o demonstrado pelo prof. Diogo Freitas do Amaral, sem que se negue, porém, o seu particular aprofundamento quanto a esta. Assim, segundo este, a relação de tutela administrativa entre duas pessoas colectivas públicas implica que os actos praticados pela pessoa tutelada se encontrem sujeitos à interferência de uma pessoa de identidade tutelar. A tutela administrativa, na sua perspectiva, é então susceptível de classificação segundo dois critérios principais[3]:
     - Quanto ao objecto - tutela de legalidade, que não pode ir além do plano de conformidade legal, e tutela de mérito, que pode incidir sobre a oportunidade e a conveniência da actuação administrativa.
     - Quanto à forma de exercício – tutela integrativa ou correctiva, que é o poder de autorizar ou aprovar actos, tutela inspectiva, que é o poder de fiscalizar, tutela sancionatória, que é o poder de aplicar sanções, tutela revogatória, que é o poder de revogar actos administrativos, e tutela substitutiva, que é o poder de suprir omissões.
Ao contrário do foi sendo, erradamente, convencionado na doutrina, que a tutela administrativa tinha como seu fim «coordenar os interesses próprios da entidade tutelada com os interesses mais amplos representados pela pessoa de identidade tutelar»[4], aos olhos do prof. Diogo Freitas do Amaral esta ideia de coordenação de interesses foi longe de mais, visto ter aberto caminho para um excessivo grau de intervenção estadual na vida das entidades tuteladas.
Já, a superintendência, é uma outra figura que, a par da já explicitada tutela administrativa, rege as entidades que exercem administração indirecta. A superintendência designa-se como «o poder conferido ao Estado, ou a outra pessoa colectiva de fins múltiplos, de definir os objectivos e guiar a actuação das pessoas colectivas públicas de fins singulares colocadas por lei na sua dependência»[5], tratando-se pois de um poder mais amplo e mais intenso que aquele que é exibido pela tutela administrativa: se num caso, são as próprias entidades que definem os objectivos da sua actuação e a vão conduzindo por si próprias, ainda que sujeitas ao controlo de uma entidade exterior, neste caso, é a entidade exterior que define os objectivos e guia, nas suas linhas gerais, a actuação das entidades que se lhe encontram sujeitas, dispondo estas apenas da possibilidade de encontrarem a melhor maneira de cumprir as orientações que lhes são requeridas. Esta distinção entre tutela administrativa e superintendência está consubstanciada no art.º 199 da actual redacção da nossa Constituição, mais especificamente na sua alínea d), onde se evidencia a existência de três situações diversas:
    a) A administração directa do Estado: o Governo está em relação a ela numa posição hierarquicamente superior, dispondo do poder de direcção.
  b) A administração indirecta do Estado: ao Governo cabe sobre ela a superintendência, tendo designadamente o poder de orientação.
    c) A administração autónoma: ao Governo compete quanto a ela desempenhar a tutela administrativa, competindo-lhe exercer em especial um conjunto de poderes de controlo.
Explicada que está a temática das «diversas administrações», que uma situação de transmissão de poderes pode eventualmente originar, permito-me eu, a dar a minha humilde posição relativamente a esta. Com efeito, considero bastante apropriada e de utilidade, a todos os títulos, reconhecida, a possibilidade de transmissão de poderes de uma pessoa colectiva pública para uma outra. Uma Administração Pública eficiente, toma as decisões mais rápida e assertivamente, se distribuir alguns dos vários interesses que lhe correspondem pelos organismos aptos a prossegui-los. Se estes existem, por uma questão de pragmatismo, deve optar-se pela via menos dispendiosa e que menos problemas tenha consigo relacionada. Essa não é por certo a de o Estado, juntamente com as regiões autónomas e autarquias locais, assumir com exclusividade todos os interesses públicos que previsivelmente lhe poderiam caber. As decisões seriam lentas, o processo que conduzisse à decisão repleto de complicações, o que convergiria, sem dúvidas de maior, em decisões desenquadradas com o contexto que as tinha requisitado. Digamos que, para mim, aconteceria aquilo que comummente se tem por «falta de timing». Mas mesmo que esta transmissão de poderes - e prefiro insistir na utilização deste termo, já que «devolução» oferece algumas, senão muitas dúvidas – seja a meu ver a decisão mais correcta, o mesmo não se pode dizer do controlo amplamente exercido pelo Estado nesse âmbito. Seja na administração directa ou indirecta, o Estado arroga-se em excesso – falo do Estado como, implicitamente, poderia fazê-lo quanto às regiões autónomas e autarquias locais – da possibilidade de as controlar, assistindo-lhes na suas actuações de maneira autoritária, não lhes dando qualquer margem de erro. Não faria sentido que, uma vez concedidos os poderes a uma determinada entidade pública, se lhe desse total autonomia na prossecução dos interesses a que com esses poderes fica habilitada? Se for uma por mera dúvida na competência ou no carácter da entidade em si, não se pressupõe que esse juízo seja feito antes de os poderes serem cedidos? Estará o Estado a eximir-se, mesmo, do exercício de alguns dos interesses que lhe correspondem, descongestionando a «máquina administrativa»? Ou estará, antes, continuamente congestionado, porque não consegue deixar de estar ligado a tais interesses?
Para finalizar, acho que o sistema da devolução de poderes como é hoje previsto, não permite que o Estado, sem mais, descongestione tanto como se quer fazer parecer, o leque das suas atribuições. Se investe uma entidade, mas o faz «de pé atrás», se é restritivo ao máximo nas possibilidades que correspondem à entidade que é criada, intervindo constantemente, e se dessas possibilidades que à partida existiriam, poucas ou nenhumas se acabam por confirmar na circunstância da sua prática, então não deixa de estar congestionado, como se pretenderia evitar.




[1] Prof. Diogo Freitas do Amaral
[2] Prof. Diogo Freitas do Amaral
[3] Prof. João Caupers
[4] Prof. Marcello Caetano
[5] Prof. Diogo Freitas do Amaral

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